> Escritos: 11.2004

26.11.04

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Está frio e escurece. E mesmo assim, aqui estou, à espera. Quando expiro, consigo ver o vapor de água. Mesmo assim, não desisto e ficarei aqui enquanto for preciso. Só consigo pensar que daqui a bocado, estarei quente e confortável. Animado por pensamentos destes, mantenho-me impassível na minha espera. Mesmo contra os elementos, mesmo contra o tempo.
Vêem-se agora poucas pessoas na rua. Os indefectíveis como eu, penso. Alguns encolhem-se dentro dos seus casacos, outros andam em círculos para se aquecerem. Eu fico quieto, esfregando de vez em quando as mãos, para as manter quentes. Engraçado como as pessoas dizem que eu tenho sempre as mãos quentes, mesmo nos dias de frio glaciar. Não devem saber que por trás disso, há muito trabalho envolvido. Desenvolvi já uma metodologia de manter as mãos quentes, apetecíveis para aquecer as mãos de outras pessoas. E digo-vos que já conto muitos minutos da minha vida a aquecer mãos alheias. Sejam da namorada, da mãe ou da amiga. Mantenho uma certa ética profissional (se assim se pode chamar) e não aqueco mãos de rapazes. Talvez aos bebés e crianças pequenas, mas poucos são esses de quem tenho o prazer de aquecer mãos. Acho que uma das maneiras de me definir, para lá do "estranho", "confuso" ou até "parvo e doido" será mesmo pela minha faceta de gostar de aquecer as mãos das outras pessoas. É uma maneira de lhes aquecer os corações, que querem que vos diga? Delas e o meu...
Chegou! Com esta distracção, nem reparo que finalmente está cá. As pessoas que estão na paragem acotovelam-se para entrar no autocarro, que nos levará para onde quisermos, que nos manterá quentes até ao nosso destino. Os passageiros sentam-se em grupinhos, na tentativa de manter o calor humano perto delas. Escolho um lugar algo afastado das pessoas todas; gosto de me sentar sozinho, tenho assim oportunidade de as observar. Outra das minhas características é ser observador. Registo tudo, mesmo que depois não faça nada com isso. Às vezes até faço; como acham que arranjo material para escrever? Se calhar um de vocês que me lê agora já foi incluído numa estória e nem notou. Seja um traço da vossa personalidade, qualquer coisa que digam, qualquer coisa que façam ou simplesmente vocês, mas com outro nome. Nunca repararam?
De volta à realidade, dedico-me a perscutar o autocarro. O condutor vai falando enquanto guia com um daqueles habituées da carreira, que já anda neste autocarro vai para uns anos. Parece-me que já se conhecem há algum tempo, pelo tom de familiaridade da conversa. Está sentado no lugar ao lado do condutor e vão falando sobre tudo e sobre nada: política, bola, estado do tempo, mais bola, curiosidades várias. Desvio o olhar e a atenção agora para a mãe que leva o filho ao colo. O bebé não tem mais que um ano e meio. É giro, o rapazito. Irrequieto, não deixa a mãe em paz durante mais do que uns segundos. A mulher, ao fim de alguns puxões por parte do filho, finalmente decide dedicar-lhe a atenção que ele merece. Deve sair ao pai, não tem traços nenhuns da mãe. Ou então a um dos avôs...
Uma travagem brusca faz-me interromper as minhas cogitações. Olho lá para fora. Trânsito; agora é que nunca mais lá chego, penso com alguma desilusão. Fico a olhar então para a rua. Como estou acima do nível dos carros, não dá muito bem para ver o que se passa dentro do habitáculo dos mesmos. Na calçada, porém, o espectáculo é bem mais interessante. Desde o simples vagabundo, ao empresário no seu fato de lã a falar ao telemóvel. Da dona de casa que regressa carregada com os sacos de compras à jovem que corre apressada para a paragem de autocarro. Uma variedade de pessoas mas de côr nem muita. Toda a gente veste cinzento ou preto, as circunstâncias assim o ditam. O Outono, quase Inverno, carrega impiedosamente e faz soprar um vento gélido, que obriga-nos a apertar o casaco ainda mais, a usar cachecol, luvas e gorro. Passamos agora a complicada rotunda e o autocarro abranda ao chegar a mais uma paragem. Alguns entram, alguns saiem. Num exercício de rapidez, o condutor vai já em andamento enquanto fecha as portas. Parece que me leu os pensamentos, de querer ir mais depressa. Ou se calhar também tem alguém à sua espera. E sabe, como eu, que o tempo e a distância que nos separam são enormes, que só com a força do pensamento dos braços abertos que nos receberão, nos fazem partir para a viagem de regresso, por mais dura que seja.
Estamos no parque. A humidade ergue-se no ar, como uma entidade. Confere um certo ar místico a estes jardins no meio do betão e alcatrão que fizeram crescer a cidade inexoravelmente à sua volta. O pára-arranca a que estamos sujeitos, mesmo na faixa reservada aos transportes públicos, por causa do trânsito enerva-me. Injurio mentalmente os condutores. Não consigo perceber como é que alguém pode guiar tão devagar. Eu, que nem sei guiar, andaria a uma velocidade maior, porque sei que é uma maneira de não irritar os outros condutores e passageiros de autocarros, como é o meu caso. Se todos pensassem como eu... Seria o mundo bem melhor? Bem, seria mais simples, isso é uma certeza.
Já so falta uma paragem! E depois é so mudar de autocarro... Ou subir a colina. E agora? Esperar cinco a dez minutos ao frio ou andar ao frio? Opto pelo comodismo. Quando o autocarro pára, saio e dirigo-me à outra paragem. Ainda ando um bocado, mas faz-se bem. E a sorte protege realmente os audazes: está lá à minha espera. Entro e sento-me. Este condutor não é tão diligente como o outro; ainda ficamos uns minutos à espera que entrem mais passageiros, que não aparecem. Pomo-nos finalmente a caminho. Sempre a subir, lentamente mas de forma pragmática. Não há pressas, só os arranques necessários para não deixar descair o veículo. Interessante como já se faz todos os gestos de forma rotineira: pousar o pé na embraiagem, pôr nova mudança, levantar o pé da embraiagem e dar um cheirinho com o acelerador, virar o volante, mandar uma boca ao condutor do carro que não ata nem desata e engonha no meio da estrada. Abstraído, nem reparo que quase deixava escapar a minha paragem. Levanto-me de um salto e carrego no botão para parar. Ouço o chiar dos travões que me é familiar e as portas abrem-se. Saio e ponho-me a caminho. Só mais uns metros...
Toco à porta. Abre-se e entro. Está tão quente cá dentro do prédio! Subo no elevador e mal consigo manter a calma. Afinal, chegarei a casa dentro de segundos. Quando o elevador pára, precipito-me para a porta de casa. Toco insistentemente até que ela abre. Estende os seus braços para mim e puxa-me para dentro. Deixo que ela me puxe para junto de si, para junto do seu corpo quente.
Cheguei a casa. Mesmo não sendo a minha, "casa" é o sítio onde o homem se sente confortável e está com as pessoas de quem mais gosta. Estou então em casa, junto da pessoa que mais gosto.

RCA

25.11.04

Escadas

Sexto. Descemos lentamente, de mãos dadas. Olhamo-nos nos olhos; sorrisos. Passo-lhe a mão pelo cabelo, aperto-lhe a bochecha. Empurra-me com a anca e diz-me para parar. Volto a apertar-lhe a bochecha, mas desta vez evito o encontrão. Agarro-a pela cintura e beijo-a. Sorri, simplesmente. Continuamos a descer.

Quinto. Vou descendo de costas, à frente dela, para poder ir falando cara a cara. Pergunto-lhe se já lhe tinha dito que era linda. Finge um ar amuado e diz que não. Ponho as minhas mãos na cara dela; está tão quente! Digo-lhe que é linda e beijo-a novamente. Ficamos assim uns segundos, até que ela diz para continuarmos a descer. Puxo-a pela mão e descemos.

Quarto. Deixo-a passar à minha frente e abraço-a pelas costas. Beijo as suas bochechas redondas enquanto lhe faço festas na barriga e sinto-a aproximar-se de mim. Procura os meus lábios e eu não lhos nego. Beijamo-nos apaixonamente; afinal, estamos apaixonados, somos jovens e temos a vida toda para aproveitar! Sem dar explicações, viro-a de frente para mim e encosto-a à parede. Percorro a sua cara com a minha boca e segredo-lhe que a amo. Empurra-me com os braços, diz-me que ali não. Olho-a com ar de desafio, ao qual responde que não abanando a cabeça. Digo-lhe que não vou desistir e fazemo-nos aos degraus, mais uma vez.

Terceiro. Surpreendo-a com um beijo. Os seus lábios estão tão ávidos quanto os meus; eles ligam-nos como cola. Sinto as suas mãos percorrerem-me o corpo. Digo-lhe que afinal ela quer tanto como eu. Embaraçada, não responde. Pergunto-lhe se quer voltar lá acima. Hesita, mas acaba por responder que não. Não vale a pena, diz ela. A isto respondo com beijos ainda mais intensos e fogosos. Ouço-a dizer para irmos embora e as suas mãos puxam-me em direcção ao andar abaixo.

Segundo. Desta vez é ela que me encosta à parede. Tudo porque a agarrei pelo braço e disse que queria voltar lá acima. Encosta-me e beija-me. Gosto de ser beijado, sentir os seus lábios quentes e húmidos na minha cara. Aperto as minhas mãos contra o seu corpo e puxo-a para mim. Ficamos assim, juntos, durante algum tempo. Quando nos libertamos, vemos nos olhos um do outro a chama da paixão. Percebemos agora que devíamos ter ficado lá em cima. Mas continuamos a descer.

Primeiro. Último andar. Parece-me que vamos ficar por aqui muito tempo. Não conseguimos soltarmo-nos dos lábios um do outro, há demasiadas coisas envolvidas para que nos libertemos assim. Beijamo-nos interminavelmente e apertamo-nos. Parece que nos queremos fundir num só. Somos apenas interrompidos pelo barulho do elevador, que desce. Estamos então nesta indecisão de ficarmos assim, irmos embora ou voltarmos para cima. Respondemo-nos mutuamente com um beijo e descemos.

Rés-do-chão. Saímos. Caminhamos lentamente, de mãos dadas. Olhamo-nos nos olhos; sorrisos cúmplices. Passa-me a mão pelo cabelo e aperta-me a bochecha. Agarro-lhe o braço suspenso. Ela abre a mão e faz-me uma carícia na cara. Puxo-a para mim e beijamo-nos uma última vez. Deixo-a seguir o seu caminho para casa e volto para trás, para subir sozinho aquelas longas escadas.

RCA

Desculpem

Ontem compromissos impediram-me de postar durante a tarde. À noite senti-me bastante doente; dores de cabeça, febre e nariz entupido e não tive paciência para a net lenta. Por isso não postei.

Deixo agora aqui um pequeno texto que escrevi ontem. Se calhar mais logo ponho mais qualquer coisinha.

RCA

17.11.04

Angústia

Vejo o céu azul límpido. Não há nuvens, só uma imensidão azul. À minha direita, consigo ouvir o mar. A ondulação cadenciada é calma; o som faz evocar sítios longínquos e exóticos que sei agora que nunca verei. E esta dor, ah! esta dor...
Estendo os braços e agarro na areia sobre a qual estou deitado. Está húmida e endurece. O sol projecta a sua luz laranja sobre mim, a praia e o mar; ganhamos tonalidades estranhas. Uma brisa sopra do mar, a brisa da maré a vazar. Os meus lábios sabem a sal, saberia bem o beijo que já não vou dar. E esta dor que me esmaga peito, que não me abandona...
Escurece. A brisa torna-se vento frio. A angústia corta-me o peito e faz-me soltar lágrimas. Sinto-me a afundar, de tanto o peso no coração. Dói-me a respirar, dói-me a abrir os olhos, dói-me tudo.
As primeiras estrelas e planetas já brilham no céu. O tempo não pára à minha volta, mas o meu tempo está a esgotar-se. Sinto-o na areia fria e dura, no vento gélido e no céu escuro. As lágrimas já não saiem. A dor vai desaparecendo. O peso que me estilhaçou o peito fez os seus danos. Compreendo agora porque dizem que todas as criaturas na Terra morrem sozinhas. Rio-me.
E com um sorriso nos lábios, morro.

RCA

10.11.04

Estória de um acontecimento, narrada pela vítima

Conheci uma mulher. Estava num bar, com uns amigos, quando uma mulher me aborda. Pede-me um cigarro, dou-lhe. Ela é muito bonita, reparo. Morena, de olhos verdes, com óptima figura. Veste-se bem. Sinto-me mesmo atraído por esta desconhecida e tento meter mais conversa com ela. Consigo. Parece-me que ela também está interessada em mim. Trocamos números antes de nos separarmos. Vou para casa e quando me deito, sinto um formigueiro na barriga, daqueles que não sentia desde a universidade.
No dia seguinte, telefono-lhe. Pergunto-lhe se se lembra de mim. A maneira efusiva com que me responde faz o meu estômago dar outro salto. Combinamos um jantar para mais logo. Passo o resto da tarde inquieto; estou mesmo ansioso por ir jantar com ela. Há algum tempo que não conhecia nenhuma mulher assim tão bonita e, à primeira vista, interessante.
Jantamos. Conversamos sobre muitas coisas: sobre mim, sobre ela, sobre o que cada um faz. Tenho a distinta impressão que ela me esconde algo, mas não deve ser muito significativo, uma vez que ela não parece preocupada, tendo segredos dentro dela. Tento não pensar nisso, e concentro-me em causar boa impressão. Mas isso nem parece necessário, uma vez que ela está embevecida com cada palavra que digo. No fim do jantar, olha-me expectante; parece que adivinha o que quero fazer. Aproximamo-nos. As suas pestanas longas quase que me tocam a cara. Sigo o impulso e beijo-a. Perante a sua hesitação, peço-lhe desculpa. Para minha surpresa, ela diz que não faz mal e, por sua vez, beija-me. Ficamos assim uns momentos a olharmo-nos nos olhos, até que ela me pergunta se a minha casa é muito longe dali. Digo-lhe que tenho carro perto e saímos do restaurante quase a correr.
Durante o trajecto, podia sentir-se a atracção magnética que existia dentro do carro. Enquanto guio, ela beija-me a cara e mexe-me no cabelo. Peço-lhe para parar, porque estamos quase a chegar. Ao ouvir isso, insiste ainda mais; sinto agora a língua dela na minha orelha. Quando finalmente chegamos, ela obriga-me a correr para entrar em casa. Assim que fecho a porta, sinto dois braços a puxarem-me pela cintura para dentro do meu quarto e deixo-me ir.
Nos dias seguintes encontramo-nos várias vezes. Acho que para uma relação assim começar da maneira que começou, é porque há sentimentos muito fortes dos dois lados. Digo-lhe isto, ela ri-se e não diz nada. Mesmo não sabendo pela parte dela, sei que por mim, sim. Não sei se se pode dizer isto logo ao fim de uma semana, mas amo-a.
Um dia, recebeu um telefonema. Ficou bastante perturbada e quando lhe perguntei o que é que se passava, não quis responder. Quando tento insistir, fecha-se ainda mais. Percebo que alguma coisa não estava bem e abraço-a. Cubro-a de beijos e sinto as suas lágrimas. Pergunto-lhe o que se passa e ela responde que me ama. Beijamo-nos apaixonadamente e ela pede-me para não a deixar. Digo-lhe que nunca conseguiría fazer isso, amo-a demasiado. Ela parece mais reconfortada e diz-me novamente que me ama.
Uma semana depois, telefona-me. Diz-me que tem que falar comigo e eu convido-a para vir ter a minha casa, onde estou. Ao fim de algum tempo, ouço a campainha tocar. Quando abro a porta, ela parece bastante nervosa. Puxo-a para dentro e digo-lhe que tive saudades dela. Beijo-a e pergunto-lhe o que se passa. Diz-me que me ama e pede-me desculpa. Quando vou a perguntar por quê, ela saca de uma pistola e dispara. Sinto o coração a explodir e a última coisa em que consigo pensar é: porquê eu? O que é que eu fiz de mal?

RCA

Estória de um acontecimento, narrada pela protagonista

O meu trabalho é simples: mato pessoas. Em troca de uma certa quantia, cometo homicídios. Dão-me dinheiro, eu mato a pessoa que quiserem. Simples, não? Eu pensava que sim, até que um dia o meu alvo era alguém que me custou matar.
Utilizei as minhas técnicas habituais para chegar perto de um alvo, fiz tudo de acordo com o plano. Neste caso, decidi que a melhor maneira de estar mais perto dele, seria engatá-lo. E foi o que fiz. Só que aqui surgiu o primeiro contratempo: ele gostou de mim a sério. Ele próprio me disse, e eu sentia-o na maneira como falava comigo. Vi-me forçada a passar mais algum tempo com ele, dando a mim própria a desculpa (e a quem me tinha dado este trabalho) que ainda não surgira uma boa oportunidade para matá-lo.
O tempo foi passando, e eu apercebi-me que também começava a gostar dele, infringido as duas regras do assassinato por sedução: a primeira, não nos apaixonarmos pelo alvo, a segunda, não deixar que o alvo se apaixone por nós. Mesmo sabendo isto, continuei a estar com ele e a ser feliz ao lado dele. Estava decidida a abandonar esta vida. Só que os meus segredos atormentavam-me e não podia dizer-lhe que era uma assassina a soldo contratada para matá-lo. A ele, que me fazia feliz. Ele percebia que eu ficava angustiada muitas vezes, mas nunca soube a razão de tal. Quando via que eu estava assim, confortava-me. Eu ficava pior, pois sabia que não podia fazer aquilo. Decidi tentar nunca pensar mais no caso, e por uns tempos, consegui.
Até que um dia, eles voltaram. Disseram-me que se eu não o matasse em vinte e quatro horas, matavam-me e a ele. Já sabiam do nosso relacionamento e por isso mesmo me pressionaram ainda mais. E eu cedi. Telefonei-lhe, disse-lhe que precisava de estar com ele. Convidou-me para a sua casa. Quando lá cheguei, cumprimentou-me com um beijo terno e carinhoso. Era bastante mais difícil do que eu pensava, mas tinha que o fazer. Disse-lhe que amava-o como nunca tinha amado ninguém na minha vida, e pedi-lhe perdão. Depois alvejei-o no coração e na cabeça. À queima-roupa, sem piedade.
Agora, ele jaz aos meus pés, esvaindo-se em sangue. Tinha morto o homem que amava e que me tinha amado como nunca ninguém o tinha feito. E, estranhamente, não consegui sentir arrependimento. Agora que ele está morto, sinto que posso seguir a minha vida em frente, pois ele está fora da equação e as pessoas que já não fazem parte da minha vida, por elas só consigo sentir desprezo.

RCA

Parte 6 - Redenção

A água escorre-me pela cara. A roupa molhada cola-se ao meu corpo; acho que nunca me senti tão desconfortável. Sinto o sangue escorrer-me pela mão, diluído pela água da chuva. Aperto ainda mais o ramo de rosas, até deixar de sentir a dor. A água purifica, traz a redenção. Talvez seja por isso que lágrimas quentes correm livremente pela minha cara, confundindo-se com as gotas da chuva.
Ao fim de uns minutos assim parado, dou os primeiros passos em direcção àquilo que é o meu destino final. Depois de três dias e duas noites de viagem, chego finalmente. Ouço trovões ecoar à minha volta e a chuva cai com mais intensidade. É como se a Natureza me quisesse impedir de fazer aquilo que vim cá fazer. O vento faz-me vacilar, a água tolda-me a vista e os trovões ferem-me os ouvidos. Reúno todas as minhas forças; tento andar mas não consigo. Penso em todos os momentos bons que tivémos juntos, ainda não dá.
Estou quase a desistir, quando um olhar me enche o pensamento. Uns olhos grandes e brilhantes, mas frágeis. O olhar com que me fitou, após a primeira vez que fizémos amor, há mais de vinte anos. Esta memória enche-me de calor e conforto, o mesmo que sentíramos aninhados nos braços um do outro. E essa força faz-me dar o primeiro passo. E o segundo, e o terceiro, e os outros, uns após os outros. Obedeço apenas ao coração, corro.
Até que chego. Páro. O calor abandona-me, a saudade esmaga-me o peito. A chuva, o vento, os trovões e todas as contrariedades páram também. Só falta agora um passo. Fecho os olhos, inspiro e expiro. Quando abro os olhos, já lá estou.
Ponho o ramo de flores na sua campa. Peço-lhe desculpa por não ter sabido fazê-la feliz, e por não ter estado com ela há um ano, quando tudo aconteceu. A chuva cai agora gentilmente, como se a Natureza chorasse comigo. Um choro silencioso e calmo, como as mães choram pelos filhos. Perdêmo-la e eu e a Natureza competimos para ver quem mais sofre. Tiro da carteira a última fotografia que tirámos juntos e despeço-me dela com um beijo. Deposito-a apoiada nas flores e desvio o olhar. Viro costas e vou-me embora. Sinto-me agora livre de qualquer peso e uma brisa fresca acaricia-me a cara. A vida pode agora continuar.

RCA

Redenção - Parte 5 - Carro

A meio da viagem, ocorre-me um pensamento. A pele dos estofos (do carro que aluguei) é macia e suave como a pele dela. O volante desliza nas minhas mãos como as suas formas, o ruído do motor faz-me lembrar o seu ronronar de prazer quando estava nos meus braços. Fecho os olhos e vejo-a, de braços abertos, a chamar por mim. Abro os olhos e sou encadeado pelos faróis de um carro que vem em sentido contrário. Assustado, desvio o carro para a berma.
Fico uns minutos de olhos fechados, a respirar fundo e a ouvir o som de aviso dos quatro piscas ligado. Quando me sinto mais calmo, volto à estrada. Ainda tenho muito para andar, e não quero apanhar chuva, para não me lembrar dos momentos maus. Aliás, tento não pensar também nos bons momentos; concentro-me apenas na condução. Fixo os olhos nos marcos da estrada, iluminados pelos faróis.
Guio até ao fim da estrada, até ao fim da noite, até me perder na escuridão. Até me embrenhar nas trevas, onde não há luz, nem som, nem nada. Só silêncio, escuridão e solidão.

Redenção - Parte 4 - Autocarro

As vibrações do vidro fazem-me doer a cabeça e desencosto a cara da janela. Observo a paisagem melancólica, que se move devagar. O autocarro rola a velocidade de cruzeiro, mas parece-me que estamos a demorar uma eternidade a chegar. Estou inquieto, mexo-me no meu lugar. As pessoas à minha volta não reparam e continuam embrenhadas nos seus pensamentos. Abafo o grito de amargura que me rói a garganta e volto a olhar pela janela.
A planície ondulada e verde estende-se até ao horizonte e perde-se no agora cinzento céu. As nuvens carregam a tonalidade da atmosfera e tudo me parece triste e solitário. O som, leve, das primeiras bátegas a colidir com o vidro antecede à fustigação das chuvas furiosas, que atacam o autocarro impiedosamente. Há agora reacção por parte das pessoas; olham assustadas lá para fora. Algumas comentam que deve ser perigoso andar na estrada com este tempo. Apetece-me gritar que a chuva está a cair por minha causa e que eles não passam de peões no meio da minha luta contra as forças da Natureza. Persegue-me, tenta-me fazer voltar para trás, não quer que eu complete esta viagem. Sabe o que eu vou fazer, sabe o que eu estou decidido a fazer. E a pensar nisto, fico a olhar pela janela, fitando o céu carregado.
Seria assim até ao anoitecer, altura em que chegamos ao nosso destino, uma pequena cidade. E eu, impressionado com as gotas de água que escorriam pelo vidro, não conseguia deixar de pensar em todas as lágrimas que a fiz chorar.

Redenção - Parte 3 - Avião

De cabeça baixa, recebo o meu passaporte e o bilhete de avião das mãos da rapariga do balcão, onde fiz o check-in. Evitei deliberadamente o olhar, para não ficar subconscientemente a desejar aquela rapariga também. Dirijo-me até à sala de espera, envolto em pensamentos. Pensamentos de coisas do dia a dia, inutilidades e curiosidades, tudo para não ter que pensar nela e nos meus desejos. Quando a porta de embarque se abre, deixo as pessoas precipitarem-se. Sigo-as na cauda da fila, levando o meu bilhete na mão. Sinto-me corar quando a hospedeira me indica o meu lugar, mas não deve ter reparado, porque a seguir já estava a dizer o mesmo a retardatários que ficaram para trás de mim. Sento-me e fecho os olhos. Abro-os só para apertar o cinto de segurança e endireitar a cadeira. Não gosto de andar de avião, e fazer esta viagem, por estes motivos, ainda me custa mais.
Acordo com o avião já no ar. Aparentemente, na última meia hora tive paz. Não sonhei, não senti nada. Se ao menos fosse sempre assim... Lembro-me com alguma tristeza que ela costumava dizer isso, quando estávamos nos braços uns do outro. Palavras, imagens e sons percorrem-me agora a cabeça. Entro numa espécie de transe e não dou conta do tempo que passa. Sinto-me tão bem, envolto nos braços esguios e claros, que me apertam gentilmente, como se me convidassem a ficar mais confortável. Sinto o contraste entre a pele suave dela e a minha pele áspera, dura e forte. Ela, frágil, procura em mim força e segurança e eu respondo como posso para lhe dar o máximo prazer. Os seus gemidos, que mais parecem miados, inflamam-me a mente e o corpo, e respondo com mais força. Sinto-me tão bem e quente, que parece que voltei para o útero materno. E quis que esta sensação nunca mais parasse...
Dormi a viagem toda. Não sonhei, mas senti-me bem quando acordei. E se pudesse sentir-me bem assim, sempre! Mas a vida não é um sonho, sobretudo quando se acorda para a dura realidade. Olho para a janela, o sol está a nascer. Um novo dia começa, mas sei que será mais um dia sem ela, portanto não ligo muito. Sinto um toque no braço, a hospedeira diz-me que vamos começar a descer e para apertar o meu cinto. Olho a fixamente, até que ela cora. Não sei se percebeu em que é que eu estava a pensar, também já desviei o olhar. Concentro-me agora em esperar que o avião aterre, para que possa sair. E continuar com a minha viagem, até ao destino final.
Assim que, finalmente, somos autorizados a sair do avião, apresso-me para o tapete onde as bagagens já estão, à nossa espera. Lembro-me então de que viajo sem bagagem. Com a mente enevoada, e os olhos marejados, tomo a direcção do terminal de autocarros, para prosseguir com a minha viagem. Ando rápido e tento encontrar nos sons que me rodeiam, algo que bloqueie o gemido de gatinha que se torna cada vez mais audível e cada vez mais insuportável.

Redenção - Parte 2 - Comboio

Já com o comboio em movimento, embarco. Dirijo-me até à minha carruagem e procuro o meu lugar, para me sentar. À parte de mim e de duas raparigas, a carruagem vai vazia. Interrogo-me para onde irão, a esta hora da noite. Concluo que a minha situação também não é muito comum, e deixo de pensar nisso.
A chuva volta a saudar-nos, desta vez a bater com alguma violência contra a janela. Não irá ser uma viagem fácil, reconheço, quando o vento começa a assobiar nas frinchas das janelas, já gastas com o uso e a precisar de reforma. Nada é eterno, e aqui está a prova disso mesmo.
Ouço um riso e volto a cabeça; uma das raparigas ria-se com vontade de algo que a outra tinha dito. Tem piada, pensava que estavam a dormir. Uma escapadela, só pode ser isso. Ou então vão esperar alguém ao aeroporto, um rapaz mistério. Percebo agora que quando dizem que os tempos mudam, mas as pessoas não. Há vinte anos, fazíamos o mesmo. Apanhávamos o primeiro comboio na estação e saíamos no sítio para onde o dinheiro que tínhamos nos bolsos pudesse pagar o bilhete. Era o nosso meio de transporte preferido. Adorávamos ver as paisagens espraiarem-se à nossa volta, passando vagarosamente ou céleres, conforme o comboio em que estávamos. Sentindo a presença de alguém ao meu lado, regresso das minhas deambulações e reparo que uma das raparigas me pede lume. Quando percebe que não fumo, faz um ar desolado e volta para junto da amiga. Atiram-me uns olhares de esperança, não devem saber que tenho mais uns quinze ou vinte anos que elas, mas sempre pareci mais novo. Era, aliás, uma das coisas que a atraía: o meu ar de criança. Achava-lhe piada, costumava dizer que eu era filho dela e que tinha que tomar conta de mim. E eu gostava, não nego.
Devolvo os olhares às raparigas. São girinhas, mas novas. Demasiado novas. Houve o tempo em que isso não me importava, antes de saber que na verdade importava. Foi no tempo do desvairio, em que procurava no corpo o prazer que não tinha na alma. Foi no tempo da dor constante. Sim, tinha o contacto da pele, os gemidos ao ouvido, os cheiros afrodisíacos, mas nunca ninguém pôs os seus braços à minha volta daquela maneira. E isso fazia toda a diferença.
A paragem vai ficando para trás cada vez mais devagar, devemos estar a abrandar, a chegar. Levanto-me. Recolho o meu casaco e passo pelas raparigas. Ouço um assobio que se confundiu com os do vento, mas ouvi. Antes de parar completamente, já tinha eu posto um pé no chão da plataforma. Afasto-me rapidamente, na esperança que as recordações fiquem para trás e não me atormentem, assim como as caras daquelas duas raparigas, que agora já desejava.

Redenção - Parte 1 - Barco

Embalado pelo movimento das ondas, começo a cabeçear. Sinto-me tão sonolento, esgotado. Mas tento lutar contra esta tendência de encostar a cabeça à janela, pois sempre que fecho os olhos, voltam os sonhos. Sonhos ou talvez pesadelos. Seja como for, sempre que fecho os olhos, vou para muito longe daqui e estou novamente em casa. A casa em que quis sempre estar, em que quis ser feliz. O motor dá mais um ronco e sinto movimento. Após a chegada dos últimos passageiros, podemos finalmente partir.
Para espantar o sono, olho à minha volta. Vejo pessoas e, para passar o tempo, invento-lhes estórias e destinos. Aquele rapaz de pé, junto à porta batente, parece-me feliz. Está calado, quieto e de olhos fechados, mas tem um sorriso na cara, que não engana. Está apaixonado e tudo parece-lhe simples e bom. Passou a tarde com a namorada e agora vai voltar à cidade. A senhora que se sentou ao meu lado, que não pára de ler uma revista, é a típica avó que mora longe da família e de vez em quando vai lá jantar a casa. Tem embrulhos no colo e tem numa das mãos uma cruzinha. Quando chegar a casa, dará imensos conselhos e recomendações ao filho e à nora e cubrirá os netos de mimos e presentes. Rio-me ao pensar que quando era mais novo, não gostava lá muito que a minha avó fosse só de vez em quando jantar a minha casa, porque trazia-me sempre presentes e bolos. Com o sorriso nos lábios, suspiro e fecho os olhos. E já parti para tão longe daqui...
E já lá estou outra vez. Consigo vê-la, senti-la. A sua pele macia e branca, contra o meu peito. Os seus braços longos e delgados envolvem-me, apertam-me contra ela e ouço nos meus ouvidos os seus gemidos fracos. De vez em quando, diz-me que me ama e pede-me para não a abandonar. Sinto-me tão quente e bem...
Acordo com lágrimas nos olhos e reparo que ao meu lado, a vida continuou. A velhinha ao meu lado tinha arrumado a revista e dormita pacatamente, o jovem fala agora com outro rapaz sobre algo que não consigo perceber muito bem e à minha frente está uma rapariga que me olha fixamente. Deve ter menos uns 15 anos que eu, saída da adolescência. Cora ao notar que eu devolvia-lhe o olhar e desvia a cara apressadamente. Não consigo deixar de evitar um sorriso ao pensar que tinha sido assim que nos tínhamos conhecido. E a rir-me, adormeço outra vez, mas desta vez não sonhei.
Voltei a acordar e desta vez dormi de forma bastante desconfortável, encostado à janela fria. Olho lá para fora: o mar está a ficar encrespado e o céu cada vez mais negro, mas estamos a chegar. As pessoas começam a levantar-se e a agarrar as suas coisas. Seguindo os movimentos dos meus companheiros de viagem, vou lá para fora e, enquanto espero pela atracagem, inspiro o ar fresco da brisa marítima. Sinto-me agora frio e desconfortável, voltei ao presente e a este lugar. Quando finalmente baixam as rampas, saímos do ferry que faz a ligação entre a ilha e a cidade, viagem que demora cerca de três quartos de hora. Tempo bem e mal gasto: lembrei-me dos tempos bons e lembrei-me também do sofrimento que as recordações trazem.
Ao sentir na cara as primeiras gotas da chuva da noite, corro instintivamente para a estação de comboio. Depois de comprar bilhete para o aeroporto, vou para a gare e sento-me a ver a chuva a cair. Chuva fresca, que canta o regresso da Primavera, que nos segreda que as nuvens negras não são tão ameaçadoras como parecem. Convida-nos a ir para o exterior, bebê-la e deixarmo-nos molhar. Melancolicamente lembro-me que nem sempre se deve deixar ir assim tão levemente. Mas levanto-me e vou lá para fora; a água corre agora livremente pela minha cara e mistura-se com as lágrimas quentes e salgadas que me saiem dos olhos. Fico assim até ir para o comboio, que me levará para longe dos lugares da minha infância.

7.11.04

Fim

Não consigo escrever mais.

RCA

Pensamentos Inquietantes VI

A dor não conhece horas, nem dias, nem alturas. Ataca quando lhe apetece. O que significa sempre.

RCA

Pensamentos Inquietantes V

Como é que se encara uma pessoa que nos mentiu? Como é que se olha para os olhos de uma pessoa, que se diz nossa amiga, e que nos fez sofrer horrores? Como é que é possível que pessoas que façam tanto mal às outras tenham direito à felicidade?

RCA

Pensamentos Inquietantes IV

As pessoas podem pensar que eu preciso de ajuda, mas nem eu sei como me podem ajudar.

RCA

Pensamentos Inquietantes III

Infelizmente, as cinco coisas que me fazem doer mais, são aquelas que estão sempre à minha volta.

RCA

Pensamentos Desencorajadores V

Já não sei onde pôr certas coisas. Se calhar até sei, mas não posso.

RCA

Pensamentos Desencorajadores IV

Como é que o mundo continua a girar?

RCA

Tudo contra mim

Não basta ter que viver com este peso no peito, não basta ter que estar sozinho, não basta ter que ver-te sem mim, não basta ter que sonhar todos os dias contigo, não basta ter que evitar fechar os olhos para não te ver, não basta saber que para ti há mais gente do que eu, não basta isto tudo, como ainda me dói a cabeça.

RCA

Pensamentos Inquietantes II

Eu não tenho medo de morrer. Só tenho medo de não cumprir aquilo a que estou destinado a fazer. E não seria preciso morrer agora para isso acontecer. Bastaria continuar a viver como estou.

RCA

Pensamentos Inquietantes I

Haverá alguma diferença entre morrer e viver na solidão?

RCA

Preferências

Preferia que me arrancassem uma perna enquanto estou consciente. Preferia que me desfizessem os joelhos à martelada. Preferia que me atropelassem. Preferia que me esfaqueassem. Preferia que me baleassem. Preferia que me esfolassem. Preferia que me cegassem. Preferia que me calassem. Preferia isto tudo a saber que tenho que viver sem ti.

RCA

Necessidades

Já não há necessidade de esconder a dor. Já não há necessidade de usar máscaras. Já não há necessidade de mudar quem sou. Há necessidade de viver?

RCA

Pensamentos Desencorajadores III

A vida seria muito mais simples, se não houvesse ninguém à minha volta.

RCA

Pensamentos Desencorajadores II

Eu já vi o outro mundo. Há calor, luz, felicidade e não há fome. Infelizmente, esse mundo foi-me fechado. Agora vivo numa prisão de dor, frio, escuridão e solidão. Não seria tão mau, se eu não soubesse que existe o outro mundo.

RCA

Pensamentos Desencorajadores I

Quanto mais procuramos, mais nos perdemos.

RCA

Conclusão

"Every creature on this earth dies alone."

RCA

Sugestão

"What if you could go back in time, and take all those hours of pain and darkness and replace them with something better?"

RCA

Diálogo

"Do you feel alone right now?

I mean, I'd like to believe I'm not, but I just... I just never seen any proof so I just don't debate it anymore. You know, it's like I could spend my whole life debating it over and over and weighing the pros and cons and in the end I'd still don't have any proof so I just don't debate it anymore. It's absurd.

The search for God is absurd?

It is if everyone dies alone.

Does that scare you?

I don't wanna be alone."

RCA

Cadernos II

O dia de ontem tinha tudo para ser óptimo, mas não foi. Até digo que foi o contrário.
E por isso, resolvi publicar os "Cadernos II".

Ao menos que sirva para alguma coisa, se não me serve de redenção.

RCA

3.11.04

Discurso

Rapazes, este é o dia por que esperavamos. É o dia em que tudo se pode concretizar, tudo está ao nosso alcance: a glória, a fama, o estatuto de heróis, mas também a desilusão e a derrota. O dia em que podemos entrar para a história. O dia em que se nos abriram as portas da perfeição e nós entrámos de cabeça erguida. Já passámos por tanto juntos, tanto tempo que tivémos para antecipar estes momentos. Tivémos as nossas desavenças, as nossas querelas, mas também os grandes momentos. E agora é só mais um passo e seremos eternamente recordados. Sei que não vos estou a pedir o impossível, vocês convenceram-me já que são capazes de tudo. Contra adversários mais numerosos e poderosos e mesmo com todas as contrariedades possíveis, conseguiram vencer, numa clara demonstração da vossa força. Só vos peço para hoje fazerem aquilo que sabem melhor: lutar. Lutar com todas as vossas ganas, por tudo aquilo em que acreditam. Em Deus, nas vossas famílias, nos vossos bens, pela vossa pátria, pela fama, pela glória, pelo que quiserem.
Daqui a pouco tempo, quando estivermos frente a frente contra o inimigo, lembrem-se que connosco estão os nossos antepassados, os nossos avós e todos aqueles que nos antecederam, todos unidos debaixo da mesma bandeira e do mesmo escudo. Todos movidos pelo ideal comum de nos tornarmos perfeitos. Quando eles parecerem mais e melhores, lembrem-se que temos a coisa mais poderosa como arma secreta: a vontade. E usem-na para conquistar cada pedaço de terreno, para combater o inimigo, para vencer.
Quando era mais pequeno, sonhava que era poderoso. Comandava exércitos e nações até à vitória final, era o líder incontestado dos meus homens, dominava territórios imensos. Hoje sinto-me poderoso. Convosco, tenho a certeza que venceremos esta batalha. Peço-vos ajuda para concretizar o meu sonho. Se ma derem, prometo-vos que serei o homem do leme, que guiará a nau a bom porto. Eu, com o vosso apoio e dedicação, serei poderoso. Vocês, com a minha inteligência e estratégia, serão invencíveis. Juntos, seremos melhores do que tudo e todos, pois a nossa causa é justa e meritória. Seremos temidos por uns, e idolatrados por aqueles que estão do nosso lado. Receberemos riquezas imensas, viveremos como reis para o resto da nossa vida. Tudo isto não é um sonho, basta agarrá-lo. Está lá fora, naquele campo de batalha. Será duro, mas no fim só poderá sair um exército vitorioso, que levará em ombros o seu general. Rapazes, este é o sonho de uma vida. O sonho da minha vida. Quero ser o general levado em braços, quando vencermos. Uns de vocês são mais velhos e mais experientes; a vocês peço que levem a calma e a sobriedade necessária para comandar os outros, quando eu não puder socorrer-vos. Aos mais novos, peço-vos a irreverência. Quero que vão para o campo de batalha decididos a deixar as vossas marcas; vocês têm que ser como leões, audazes e fortes! Se a derrota parecer inevitável, ouçam os meus conselhos. Confiem em mim, assim como eu confio em vocês. Sei que se derem o vosso melhor, é possível vencer esta batalha, a batalha final, em pouco mais de uma hora. Temos que entrar na peleja confiantes na vitória e decididos a deixar sangue, suor e lágrimas lá, se necessário. Depois de tudo pelo que passámos juntos, a nossa luta, a nossa guerra, a nossa vida resume-se a uma batalha final, em que saíremos derrotados e jamais seremos recordados, ou então seremos os conquistadores, os gloriosos, os melhores. É só isto que eu vos peço: sejam os melhores nesta batalha. Prometo-vos que assim ganharemos.



Muito bem, então. Na baliza vai jogar o Zé, no centro da defesa...

RCA

Reflexões de um dia de chuva

Sabe bem, quando chove.
Sabe bem, a chuva a escorrer pela minha cara.
Sabe bem, ver o teu cabelo molhado.
Sabe bem, o desejo ardente.
Sabe bem, a tua pele macia.
Sabe bem, aquecer as tuas mãos.
Sabe bem, o calor do teu corpo.
Sabe bem, os teus braços à minha volta.
Sabe bem, os teus lábios colados aos meus.
Sabe bem, o alívio.
Sabe bem, purificarmo-nos pela água.
Sabe bem, amar-te.

RCA