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2.9.08

Sonhos

Iteração.

Deitados, na cama, vivo em suspenso mediante cada inspiração tua. Acordado, sozinho na noite e no prédio, dedico-me a pensamentos impensáveis durante o dia, quando acompanhado de alguém e de luz, à semelhança do edifício, que aproveita a noite silenciosa para se ajustar nas suas fundações e alicerces, quando acredita que ninguém o pode ouvir. Mas eu ouço e, por solidariedade, ajusto os meus planos em função das tuas acções. Lembro-me do teu sorriso, tão forçado que até a mim me doeram os dentes de tanto esforço que fizeste para que as aparências não destoassem. Algo mudou. Algo não está correcto. Consigo sentir uma encosta descendente para o sonho. Consigo aperceber-me de algo escuro, algo novo e sedutor e tu ficas aí, quieta e muda a meu lado, deitada a dormir e sem nada fazeres. Mas isso já não espanta; nem a escuridão aparente que me pode trazer o sono é-me estranha.

Percorro o habitual corredor da academia. Por entre portas abertas vou vendo fogo e noite, truques de luz e escuridão operados em frente aos anciães quadros de ardósia. Não posso deixar de me sentir maravilhado com as coisas que aprendi quando novo e que hoje ponho de lado a cada momento. E enquanto aprecio o espectáculo oferecido à diligente juventude, movida a curiosidade, café e outro tipo de energia emprestada, reparo na figura ubíqua, no denominador comum, na pessoa que se me vai iludindo de sala em sala. E vejo-te, em todas as tuas encarnações, nas salas de aula, nos corredores, na biblioteca, nas salas de estudo sem nunca apanhar de ti mais do que um olá de circunstância. Empenho-me, então, em nada mais do que ser mestre dos mesmos truques que extemporaneamente surgem de todos os recantos. Só quando finalmente me preparo para abandonar os livros e abraçar o conhecimento é que reconheces a minha existência corpórea. E, no meio dos últimos ensinamentos de água e terra, vida e morte, surges a contra-luz na soleira da porta, dando-me a mão e a conhecer o reverso da medalha. Deixo então de falar com os aguaceiros e estes, desiludidos, recuam e desfazem-se no esquecimento do fundo da sala. Dirigimo-nos para os portões, lá para fora, para a vida adulta.

A gota de água no mundo produz um pequeno arco-íris improvisado entre letras e números, assuntos de gente crescida e importante. Pouso a garrafa enquanto me lembro da outra gota – ou será a mesma? – de água, solitária na porta de vidro do chuveiro, que não se movia. Exaspero perante a contradição; consigo controlar coisas significativas como o aguaceiro quente que gentilmente me cai sobre a cabeça e ombros mas não consigo que uma gota irrisória se agrupe às irmãs e desça para o seu destino. Prescindo de mais confrontações e deixo-a em paz.

Regresso à realidade com o peso de um relatório que bate no tampo da minha secretária. Fogo e noite, relembro ao meu colega. Não parece ter percebido a referência e pergunta-me se ouvi o que ele dissera e sossega quando eu aquiesço, embora não o tenha feito, pelo menos que me lembre. Fica parado, a olhar para as paredes, como se a sua única função fosse estar ali e aconselhar-me sobre assuntos para os quais não tenho aptidão. E, enquanto folheio distraidamente o documento maçudo e sem conteúdo, lembro-me das paredes lá de casa e ao que elas já assistiram. Nelas ficaram gravadas as sombras do que fomos e da indiferença que me dispensas ampliada tantas e tantas vezes a partir da com a qual eu te tratava. De pé, no nosso quarto, olho para as minhas mãos impotentes, pensando em como perdemos o controlo e sinto os dedos contorcerem-se em desespero. Não rasgues, avisa-me o meu colega que já não olha para o tom neutro que cobre a parede em frente e que me faz pensar se não estaria a fazer o mesmo que eu. Largo o relatório que principiava a destruir e, passando a mão pela cara, tiro o casaco dos ombros da cadeira e vou para casa. Parado no trânsito, olho pelo retrovisor e, do banco de trás, os teus olhos encontram-se com os meus. Arranco e paro; relanço o olhar e vejo um braço de homem à volta dos teus ombros e um sorriso nos teus lábios. Torturo-me e olho-te nos olhos, mas este sentimento torna-se velho e o teu olhar também.

Gradualmente, desço a um sono sem sonhos e desconsolado em que o fio branco dos auscultadores contrastando com a tua pele morena se torna o fio condutor de um pensamento que se vai formando e esfumando no horizonte. Acordas-me gentilmente e dizes que vais para casa. Replico que moras aqui e tu dizes qualquer coisa acerca de casa da tua irmã que não percebo porque virei a cara para a almofada do sofá. Fico então a pensar se o meu colega não teria razão quando afirmou que já não há romance e se ele ainda estará sentado no escritório vazio, silencioso e escuro, a olhar para as paredes.

Cansado e doente, o vento que me bate nos ouvidos traz murmúrios e resquícios da tua voz, segredos de ânsia e súplicas, como se estivesses perdida, mas o nevoeiro baixo e espesso enche o meu mundo de cinzento. Desorientado e desconfiado, dou o primeiro passo.

1 Comments:

Blogger An@ said...

Adoro ler-te! =)
Sinto-me a entrar, mesmo que "sem ver", no teu pequeno percurso, nos teus pensamentos... :)

gmdt, Goga! *

9:32 da tarde  

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