> Escritos: 01.2007

28.1.07

Darwinismos ou Reflexão extemporânea

Se só os mais fortes e adaptáveis subsistem, como é que eu ainda estou aqui?


RCA

15.1.07

Nocturno - op. 6

Abro os olhos novamente e novamente vejo o tecto. Sei que agora estou mesmo acordado porque oiço barulho de loiça à minha esquerda e a mesa de cabeceira com o despertador está à minha direita. Espero que a silhueta entre em contraluz na porta aberta e quando as pernas morenas se evidenciam antes dos longos cabelos castanhos que emolduram o sorriso alvo e puro na cara de feições angelicais à soleira da porta do quarto, sorrio. Inspiro e fecho os olhos.


RCA

Nocturno - op. 5

Abro os olhos e vejo o tecto. Sem desviar o olhar, toco com a mão direita no corpo que está ao meu lado. O tacto revela-me uma pele seca, rugosa, quebradiça. Olho para o despertador na mesa de cabeceira à esquerda da cama; só se passaram seis minutos desde que me deitei.

Nocturno - op. 4

Abro os olhos e expiro. Estou aninhado no chão, aos pés da cama. Sento-me nela e olho instintivamente para a direita: o espelho agora está lá.
Suspiro de alívio. Olho para o que se passa lá fora, a cidade, minha companheira de insónia. Mas não é a minha cidade.
É, mas está com as cores invertidas, como o negativo de uma fotografia. Sinto o coração bater mais rápido, os pulmões a expandirem-se, as pupilas a dilatarem-se. Levo a mão ao coração; lá está ele, fiel, a bater no lado direito.
No meu tímpano furado, o esquerdo, segreda-me uma voz suave, quente, esperançada, acompanhada pela melodia que o pássaro estava a cantar, tocada em piano:


- Isto está tudo a passar-se na tua mente, eu conheço-te. Eu conheço-te. Isto não é verdadeiro. Não há regras, não há realidade, é tudo tão fácil… se acreditares, claro…

Pouso as mãos na cama. A minha mão direita toca num calcanhar suave. Pelo canto do olho, vejo uma cabeça coberta de longos cabelos castanhos deslizar na almofada.

Nocturno - op. 3

Abro os olhos. Levanto-me e sento-me na cabeceira da cama. Olho para a esquerda e reparo que o espelho está agora naquela parede. E que o meu cabelo cresceu exponencialmente, acompanhado por uma barba grisalha.
Olho para a frente; a cidade vê, como eu, o Sol nascer a Oeste e pôr-se rapidamente a Este. Antes que me aperceba desta aparente incongruência, o astro repete a façanha. E outra vez, fazendo movimentos destes em pouco mais de trina segundos. A cidade acompanha: vejo as pessoas, carros, aviões, tudo em passo acelerado, a viverem as suas rotinas, mas agora em reverso. Consigo ouvir tudo o que me rodeia, mas de trás para a frente, acompanhado de um silvo imperceptível. Fecho os olhos e inspiro.

Nocturno - op. 2

Sinto a unha do dedo mindinho do meu pé direito a raspar no edredão. Faço o mesmo movimento para o outro dedo e ele está lá. Mais um. E outro. E o dedo grande fecha a contagem de cinco. Repito o exercício, desta vez com o pé esquerdo; cinco deste lado também. Cerro os punhos. Agora que acordei, sou um ser humano normal; dez dedos nos pés, dez dedos nas mãos.
Soergo-me e volto à posição do meu sonho, mas agora uma só luz provém da cidade envolta em escuridão, tocada por algo maléfico, que espreita por cima da figura reflectida em primeiro plano nas vidraças. Fixo o olhar nela; sinto uma aura de negrume assentar-me nos ombros. A figura que me devolve o olhar sou eu, mas com olhos dardejantes e cruéis.
Fecho os olhos. Abro-os. Semicerro-os. Acto contínuo, o meu alter-ego mimeta os meus movimentos oculares. Cedo e, como que em câmara lenta, procuro o meu reflexo no espelho da parede à minha direita, mas não estou só.
Uma sensação de uma agulha extremamente fina a penetrar-me o miocárdio, batimentos irregulares, arritmia. Uma figura negra acompanha-me.
Rodo a cabeça cento e oitenta graus para a esquerda; não está lá nada. Movimento inverso para a direita, não logrei fazê-la desaparecer. Olhei-a, então, nos olhos e ela falou. Não a ouvi pelos meus ouvidos surdos, mas antes a sua voz ebúrnea, pesada, pastosa, entrou através do olhar e propagou-se por todos os meus ossos, como se a raspar.

- Tu sabias que tens um coração de pedra.
Podias-me ter avisado.
Devias-me ter avisado.

Senti os movimentos cardíacos acelerarem e o coração gelar enquanto se calcificava. Um cheiro a enxofre foi a última coisa que o meu cérebro processou antes de se desligar.

Nocturno - op. 1

Vagarosamente, abotoo a camisa. Ergo o olha para as portas envidraçadas de acesso à varanda, mesmo em frente à cama onde me sento. Do lado de fora, a cidade adormecida devolve-me o olhar, amortalhada pela neblina, velada pela escuridão, salvaguardada pelas luzes bruxeleantes de algumas janelas.
Um pássaro madrugador chilreia mas antes que consiga explanar a sua melodia, a composição é estrangulada pelo leve ronronar de uma carrinha, parada debaixo da janela.
A frequência aumenta de nível e transforma-se numa espécie de estática que me entra pelos ouvidos. Consigo sentir a ressonância da vibração na minha cabeça e nos meus ossos. Uma onda mais intensa perpassa-me o ouvido direito e depois faz-se silêncio; algo goteja na minha orelha direita.
Levo uma mão lá e depois passo-a em frente aos meus olhos. A parca enrubescência na escuridão confirma-me que é sangue. Um calor fulgurante na perna esquerda desvia-me a atenção e faz-me olhar para baixo.
Consigo ver as veias a palpitar, fazendo subir e descer o tecido rugoso das minhas calças. Um ruído agudo e baixinho insinua-se de alguma forma pelo meu tímpano direito, que está furado. Sinto os gânglios a inchar, tornando difícil a tarefa da respiração.
Mais importante que isso, constato, inexpressivamente, que tenho seis dedos no pé esquerdo. Desvio o olhar para a direita e consigo ver o dedo grande e, logo ao lado, o dedo mindinho. Afago suavemente a alcatifa por baixo dos meus pés descalços, com os dois dedos do pé direito.

10.1.07

Regresso

Confesso que sou melhor nisto, de escrever.

Confesso que me sinto melhor sempre que escrevo.

Confesso que isto é uma necessidade.

Confesso que isto é como o ar, o sono, a comida, o whisky, os analgésicos.

Confesso que estou mesmo de volta.

Em breve, muito em breve.


RCA