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10.11.04

Redenção - Parte 1 - Barco

Embalado pelo movimento das ondas, começo a cabeçear. Sinto-me tão sonolento, esgotado. Mas tento lutar contra esta tendência de encostar a cabeça à janela, pois sempre que fecho os olhos, voltam os sonhos. Sonhos ou talvez pesadelos. Seja como for, sempre que fecho os olhos, vou para muito longe daqui e estou novamente em casa. A casa em que quis sempre estar, em que quis ser feliz. O motor dá mais um ronco e sinto movimento. Após a chegada dos últimos passageiros, podemos finalmente partir.
Para espantar o sono, olho à minha volta. Vejo pessoas e, para passar o tempo, invento-lhes estórias e destinos. Aquele rapaz de pé, junto à porta batente, parece-me feliz. Está calado, quieto e de olhos fechados, mas tem um sorriso na cara, que não engana. Está apaixonado e tudo parece-lhe simples e bom. Passou a tarde com a namorada e agora vai voltar à cidade. A senhora que se sentou ao meu lado, que não pára de ler uma revista, é a típica avó que mora longe da família e de vez em quando vai lá jantar a casa. Tem embrulhos no colo e tem numa das mãos uma cruzinha. Quando chegar a casa, dará imensos conselhos e recomendações ao filho e à nora e cubrirá os netos de mimos e presentes. Rio-me ao pensar que quando era mais novo, não gostava lá muito que a minha avó fosse só de vez em quando jantar a minha casa, porque trazia-me sempre presentes e bolos. Com o sorriso nos lábios, suspiro e fecho os olhos. E já parti para tão longe daqui...
E já lá estou outra vez. Consigo vê-la, senti-la. A sua pele macia e branca, contra o meu peito. Os seus braços longos e delgados envolvem-me, apertam-me contra ela e ouço nos meus ouvidos os seus gemidos fracos. De vez em quando, diz-me que me ama e pede-me para não a abandonar. Sinto-me tão quente e bem...
Acordo com lágrimas nos olhos e reparo que ao meu lado, a vida continuou. A velhinha ao meu lado tinha arrumado a revista e dormita pacatamente, o jovem fala agora com outro rapaz sobre algo que não consigo perceber muito bem e à minha frente está uma rapariga que me olha fixamente. Deve ter menos uns 15 anos que eu, saída da adolescência. Cora ao notar que eu devolvia-lhe o olhar e desvia a cara apressadamente. Não consigo deixar de evitar um sorriso ao pensar que tinha sido assim que nos tínhamos conhecido. E a rir-me, adormeço outra vez, mas desta vez não sonhei.
Voltei a acordar e desta vez dormi de forma bastante desconfortável, encostado à janela fria. Olho lá para fora: o mar está a ficar encrespado e o céu cada vez mais negro, mas estamos a chegar. As pessoas começam a levantar-se e a agarrar as suas coisas. Seguindo os movimentos dos meus companheiros de viagem, vou lá para fora e, enquanto espero pela atracagem, inspiro o ar fresco da brisa marítima. Sinto-me agora frio e desconfortável, voltei ao presente e a este lugar. Quando finalmente baixam as rampas, saímos do ferry que faz a ligação entre a ilha e a cidade, viagem que demora cerca de três quartos de hora. Tempo bem e mal gasto: lembrei-me dos tempos bons e lembrei-me também do sofrimento que as recordações trazem.
Ao sentir na cara as primeiras gotas da chuva da noite, corro instintivamente para a estação de comboio. Depois de comprar bilhete para o aeroporto, vou para a gare e sento-me a ver a chuva a cair. Chuva fresca, que canta o regresso da Primavera, que nos segreda que as nuvens negras não são tão ameaçadoras como parecem. Convida-nos a ir para o exterior, bebê-la e deixarmo-nos molhar. Melancolicamente lembro-me que nem sempre se deve deixar ir assim tão levemente. Mas levanto-me e vou lá para fora; a água corre agora livremente pela minha cara e mistura-se com as lágrimas quentes e salgadas que me saiem dos olhos. Fico assim até ir para o comboio, que me levará para longe dos lugares da minha infância.