> Escritos: 12.2004

25.12.04

Neve

Caíu de joelhos no chão frio. Apoiou-se nas mãos para se levantar, mas não conseguiu. Deixou-se ficar assim, prostrada, durante algum tempo.

Os dedos, destapados, esgravatavam a neve em busca de pontos de apoio para se poder levantar. O pescoço nu enregelava com os flocos que entravam pela gola rasgada. O seu nariz estava tão frio, que já nem o sentia. A roupa molhada colava-se ao corpo e a sua dignidade desaparecia tão rapidamente como a água escorria pelo cabelo.

Percebeu que era inútil resistir à fúria dos elementos e deixou-se ficar deitada, na neve fria.

Enquanto esperava a morte, compreendeu que devia ter aproveitado a boleia daquele rapaz, que se ofereceu para a levar para casa, ou pelo menos para um sítio abrigado. Percebeu que, ao ter recusado a oferta, tinha-se deixado ficar para a morte. Não tinha sabido ser humilde para entrar no carro, quando ele tinha aberto a porta. O seu orgulho tinha-a impedido de se salvar e agora estava ali para morrer de frio, sozinha, no meio da floresta.

Conformou-se com o seu destino e pediu desculpa ao rapaz por ter sido má para ele. As últimas lágrimas que chorou congelaram ainda na sua cara. E morreu, sem um sorriso nos lábios.

RCA

5.12.04

Já era preciso

Decidir pôr isto em ordem. Há aqui coisas que me escaparam ao controlo, mas tudo estará agora no seu devido lugar.

Para continuar a ler mais sobre o que se tem passado aqui, façam-no aqui.

A emissão segue dentro de momentos, conforme a normalidade.


O Escritor

4.12.04

Escuridão

Estamos os dois, frente a frente, num círculo. À nossa volta, visões dos tempos que passámos juntos, vistos pelos meus olhos, pelos dela e vistos por fora. Aos nossos pés, jaz uma bruma feita das vozes das pessoas que conhecemos. De vez em quando, uma dessas vozes que murmura sobe e envolve um de nós. Estamos imóveis e silenciosos. Subitamente, as vozes sobem junto dela e fazem-na desaparecer por trás da cortina de fumo. E é quando ela reaparece, que tudo muda.

Nas visões dela, tudo o que faço, ela recebe com desdém. Parece aborrecida com o que lhe digo e vejo-me, através dos olhos dela, cada vez mais insignificante e pequeno, com uma grande escuridão a apoderar-se de mim.
Desapareco das visões das outras pessoas, sou substituído por outro qualquer. Tento perceber como é isso possível. Fui eu que fiz aquilo, que disse aquilo, que lhe mostrei as coisas que ela vê! Como podem agora tentar pensar que outro qualquer merece partilhar aquilo com ela?
As forças começam a abandonar-me. Penso que seja por causa da dor que tudo isto me inflige, quando reparo na cara dela. Tem uma cara de esforço, mas ri-se. Não compreendo como se pode rir daquilo tudo. Sinto-me como que atingido por um raio quando finalmente percebo.
Ela ri-se, porque está a apagar as minhas memórias. As coisas que eu vi começam a esbater-se e a perder-se. Tento desesperadamente impedi-la de continuar a matar-me, mas ela está inabalável e impiedosa. Já nem existo nas visões dela, dei o lugar a alguém diferente em cada visão.
Agarro-me com todas as minhas forças à última visão que ainda tenho, a vez em que ela chorou nos meus braços, a vez em que ela estava mais frágil e vulnerável. Mas nem isso me salva. Ri-se com desprezo dessa visão e apaga-a como se nunca tivesse existido. E reduz-me à insignificância, como se eu nunca tivesse existido também.
Sinto-me então cair num grande poço, feito de escuridão, sem fundo. Caio cada vez a maior velocidade, mas parece que nunca chegarei ao fim desta queda. Enquanto caio, não consigo deixar de pensar porque é que ela me fez isto, mas não consigo culpá-la, pois perdoar-lhe-ei sempre tudo. Mesmo que isso me mate, que é o que me está a fazer.


RCA