> Escritos: 07.2007

27.7.07

Conjecturas

Porque é que gostamos de nos sentirmos mal? Porque é que gostamos de planear depressões a médio-longo prazo? Porque é que teorizamos situações em que possamos fazer uma escolha que leve ao isolamento?

Confronto-me com decisões que só tenho de tomar daqui a meses, anos, eras e mesmo assim decido já pela via fácil do isolamento, do eremitismo, da solidão. Não sei se é epicurismo tirar contentamento pelo facto de saber que, se fosse agora, escolheria isto e aquilo. Não sei o que sei e o que julgo saber, sentir e aplicar à minha vivência.

Continuo a explorar os sentimentos que me enchem e a tentar compreender as sensações que a minha pele alberga. Sinto a falta do toque hidratado na superfície rugosa da minha epiderme mas receio que se torne mais que isso. Receio ter que puxar as mangas para cima para descobrir mais pele para ser tocada e acariciada.

Ignoro a totalidade da devastação que provocariam as opções que tomo agora se as tomasse na altura devida. Remeteriam-me para um canto? Libertar-me-iam? Não sei e mais uma vez, julgo que só saberei se as tomar no momento certo.

Mas esta minha mania do estoicismo, de querer não me levar por entusiasmos, de querer aguardar que passem os ventos frios e que o sol não se detenha muito tempo sobre mim, levar-me-á onde? Ao que pretendo; uma vida sem sobressaltos? Ou, por outro lado, a toda uma existência patética?

Receio por tudo isto. Temo que quando chegar o dia em que o amor for demais, me lembrar das palavras que profiro na minha mente todos os dias: já nada mais há a fazer. E será nessas alturas em que me deixarei levar por perversões e promiscuidades, justamente as coisas que quero combater.

O que é que vai acontecer ao meu corpo? Será mais uma carcaça a apodrecer debaixo da terra argilosa? Ou conseguirei que a minha memória seja exaltada pelos que virão, posta lado a lado com a dos nossos maiores?

O que é que temos que fazer? O que é que temos que decidir? Temos mesmo que decidir agora? Não podemos simplesmente contemplar as opções à medida que elas se desenrolam? Não podemos, pacatamente, prever que tudo cairá nos lugares devidos?

Não podemos deixar de conjecturar e somente observar à distância, seguros na nossa solidão?


RCA

23.7.07

Sonhos

Primeiras noites e dias.

Embalado, como quem toma balanço, vou pela vereda abaixo até chegar à água. Cautelosamente, enfio os dedos dos pés nas águas escuras e frias e tenho medo, medo da escuridão que revolve debaixo nas profundezas. Retraio-me.

Sossega, dizes-me tu, enquanto me afagas o cabelo. Entreabro os olhos e vejo-te a cara. Encolho-me no teu colo e fecho novamente os olhos.

Uma sensação de beatitude preenche-me. Os escolhos vêem dar à margem enquanto o rio se desintegra. Uma ruptura no meio do leito. O mundo acaba aqui e tudo converge para o abismo. O mundo acaba e as minhas preocupações são varridas pelo vento. As pedrinhas agarram-se desesperadamente às margens para não serem sugadas pelo vórtice. As águas agitam-se com medo e tentam abraçar-me para que eu não as deixe ser levadas. Mas estou calmo. E permito que os meus membros se alonguem e fujam à escuridão, em direcção ao sol que se põe.

Acordo no dia seguinte. No trabalho, um colega diz-me: já não há romance. Mas não lhe ligo muito, estou distraído a pensar em blusões de cabedal e guitarras castanho-escuro. Um cabelo cai sobre a minha mão. Passo o resto dia a querer dormir para poder sonhar.
No parque de estacionamento, uma camisola está presa num ramo. Um mocho pia e sinto um arrepio percorrer-me as costas. Olho para trás e vejo a pequena casa branca com telhas vermelhas no topo. Pela chaminé sai fumo e um cheiro doce a maçãs verdes preenche o ar. Vejo a humidade descer sobre a terra escura e as pinhas amontoadas e dispersas como caveiras num campo de batalha brutal e antigo.
De sobressalto, acordo. Apoio os braços na mesa e o computador devolve-me o olhar no seu ecrã negro. Mexo o rato e uma folha de texto branca preenche agora as duas dimensões em frente dos meus olhos. Tiro o casaco das costas da cadeira e vou para casa.
À noite, deitado na minha cama, só consigo ver no tecto o rectângulo branco do monitor que não desliguei no escritório. Consigo ouvir a tua respiração pausada e sinto os lençóis mexer com o teu movimento. O calor sufoca-me. Toco-te no ombro despido, a tua pele está fria e dura, como se estivesse morta há dias. Fecho os olhos e viro-me para o lado.

A terra debaixo dos meus pés treme suavemente por causa dos cascos dos cavalos que galopam ao longe. O fogo vibra por todo o lado enquanto cadáveres mutilados estão espalhados. Não sinto o calor das chamas que rodeiam a planície mas sou obrigado a olhar para cima em busca de ar, o fumo enche-me a garganta e asfixia-me. Vejo, então, que das nuvens não brota água, mas jorra fogo e pedra como chuva. Uma sensação de terror percorre-me os músculos paralisados. De frente para mim, uma figura envolta em sombras negras e mantos da mesma escuridão estende a mão para mim e toca-me no ombro. Sinto os ossos insuflarem-se e quebrar enquanto um grito fica preso na garganta cerrada.

Gritaste, apontas-me com um ar acusador. Estamos sentados na cama e ligaste a luz da tua mesa de cabeceira. Percebo que estou completamente encharcado em suor e vou tomar um duche. Enquanto a água me arrefece a pele quente, o ombro dói-me como se tivesse tentado travar um carro de frente com ele.
Viajamos para longe, para algum dos sítios que outrora visitámos e gostámos. Estou sentado à coxia do avião, tu sentas-te à janela e olhas lá para fora com um olhar sonhador. Concentro-me na minha revista. Não trocamos palavras embora aspiremos o mesmo ar; chega-nos.
Vou a sair da porta de casa para passear nas ruas banhadas pelo sol tórrido. Começo a ver as pessoas sentadas nos degraus das portas, à sombra, quando alguém me puxa pelo ombro. Olho para o lado e vejo-te, sentada, no teu lugar do avião à janela.
Já estavas a sonhar? Não sei, respondo. Se estivermos a ver o que sabemos ser real, é sonhar? Não me elucidas e voltas a olhar lá para fora, para o oceano azul límpido.

No topo do prédio, um zumbido eléctrico enche o ar. De porta aberta, estou sentado no lugar do condutor e com as pernas de fora, fitando a cidade que desperta. Falas comigo com um ar aflito e numa língua estrangeira. Sacudo a cabeça e respondo-te no idioma que conheço. Apontas para o céu e dizes mais algumas palavras. Encolho os ombros e digo-te que não sei o que te dizer. Continuas de dedo insistente para cima e eu sigo-o. O céu diz-me qualquer coisa que não sei interpretar. Viras-me costas e corres para a borda. Deixas-te cair quando lá chegas. Olho para o espelho retrovisor e vejo dois olhos inexpressivos e mortos.

Saímos pela traseira do monstro mecânico que voa. O ar é um miasma de gases mortos que passa por ar. Porque viemos para cá? Tudo está morto, até o próprio ar. Os funcionários do aeroporto tem os olhos mortiços e movimentos lentos. A roupa deles está-lhes larga e bafienta. Esperamos pacientemente no terminal, junto ao tapente rolante que nunca passa as nossas bagagens.

Acordas-me novamente no avião. Estavas a falar das malas, reportas. Estava? Ainda não chegámos? Fazes que não com a cabeça e aquiesço. O oceano fôra substituido por terra, lá em baixo e começam a notar-se edifícios. Estamos a descer.

19.7.07

20, ou a banda sonora da vida de nós os dois

20. Beniamo Gigli - Nessun Dorma (Turandot, Puccini)


O sono não vem e não virá. A noite não deixará ninguém dormir e eu não me deixarei dormir até definir o que fazer com a minha vida que passa, para que quando adormecer, seja um sono doce, sem sobressaltos, confortado pelo facto de saber ter um rumo para atacar tudo quanto seja obstáculo. Que ninguém durma, especialmente tu e eu, nos nossos quartos frios. Não quero que durmas porque quero que passes o mesmo que eu, quero que sintas a saudade impiedosa roçar nos ossos e encher as cartilagens de líquido até inflamar. Quero que sintas a dor e desespero das noites em que a alvorada não vem.
Que as estrelas velem por nós todos nesta noite. Que as estrelas tremam de temor pela magnitude do meu amor, que tremam com a minha fé e esperança em que tu cedas e eu me levante e erga a cabeça. Que a noite não cesse enquanto eu não a matar para que nós dois possamos compreender. Compreender o que nos move, compreender o amor que nos consome.
Mas as minhas intenções mantêm-se fechadas em mim; um mistério, até mesmo para mim. São secretas e ser-me-ão reveladas quando for a altura certa. Guardarei os pedaços de cada noite dentro de mim como combustível para manter o fogo vivo que vai iluminar todas as outras noites de forma esplendorosa.
Anseio pelos teus lábios na minha pele. Anseio o beijo que me darás quando perceberes que sou um príncipe que se fez sozinho e que lutou contra o silêncio imposto pelo amor inconfessado. Anseio pelo beijo que te darei que te fará minha. Anseio pela luta contra as muralhas fortes e seguras e torres altas e orgulhosas e moinhos de vento que serão sempre gigantes. Anseio pela luta e já escolhi uma.
Abro o armário e pego em todas as garrafas que consigo. Levo-as para a cozinha e ponho-as dentro de um saco. Levo o saco para a sala e meto lá dentro as restantes garrafas. De saco na mão, procuro pela casa tudo o que seja o inimigo. Volto para a sala, com o saco cheio e a retinir o vidro, os líquidos inquietos nas garrafas, os comprimidos a bater contra o plástico que os guarda. Deposito tudo no chão da sala. Vou buscar um bastão ao meu quarto. De pé, em frente ao saco, olho pela janela e a noite mantém-se. Inspiro. Com um sorriso nos lábios, começo a espancar as garrafas que se partem como castelos de areia na praia. Devolvo com uma força brutal todo o desespero e paz podre que o álcool e os comprimidos me deram ao longo dos anos, devolvo com todos os músculos do meu corpo a dor provocada. Rebento o vidro todo até não ser mais que cacos que jazem derrotados no fundo de um saco do lixo, no chão da minha sala. Sinto a doce redenção fluir nas minhas artérias, expulsando o amargo da angústia, levando a cada célula do meu corpo a libertação.
Que acabe a noite. Que recuem as estrelas que guardam a noite e o teu sono. Ordeno às estrelas e à lua que se ponham e que suba o sol e traga consigo a alvorada. Que venha a alvorada e que testemunhe a minha vitória sobre a infelicidade pois eu atravessei a mais longa das noites e, batalhando sozinho, derrubei os castelos erguidos contra mim e corro para ti e para a luz; serás minha novamente. Que agora a luz se submeta a mim pois eu venci.


RCA

12.7.07

20, ou a banda sonora da vida de nós os dois

19. David Lanz - Silent Night

A noite fria e silenciosa insinua-se por cada frincha de cada janela e porta, intromete-se insidiosamente em mim pela pele debaixo das minhas unhas. A noite fria e silenciosa instala-se nas ruas e esconde sombriamente as poças que a chuva deixou. Esconde sadicamente as feridas que a chuva me infligiu.
De pé, contra a janela, observo a rua deserta. Vejo-me reflectido no vidro; a minha imagem mostra-me que estou velho, gasto e quebrado como uma mesa que suportou demasiado peso ao longo dos anos. A cada minuto que passa envelheço e um bocado de mim morre por dentro. Aguardo o momento em que conclua finalmente que tu não vais voltar, o momento em que descobrirei que terei que sair e procurar-te. Esse momento demora a chegar e deito-me no chão, de cara para cima. Um dos meus companheiros, o tecto, começa a cansar-se de mim e eu dele. A alternativa a tudo isto é o armário que encerra promessas de alguma paz, mas a paz durará apenas algumas horas e é carregada de ironia.
Um vento triste e que chia nas frinchas de alguma janela mal fechada bate, certamente, as árvores da rua, abanando as suas folhagens e ramos, partindo algum mais velho. Tenho medo que o vento me faça o mesmo e aninho-me como que me para proteger. Fico assim durante um bocado, de olhos fechados e saboreando o sal das minhas lágrimas.
Acordo sobressaltado. As horas passaram, continua escuro. Parece que esta noite vai manter-se noite por princípio, até que eu infira e assimile a gravidade da situação. Estava em frente ao poço e não sei em que direcção foi o passo que dei. Não sei se me deixei cair para as profundezas da terra onde vivem os animais rastejantes e se levei comigo alguma escada ou corda ou algo que me ajude a subir para a superfície onde vivem as pessoas que andam de cabeça bem levantada.
A própria incapacidade que tenho em não saber o que ficou feito desespera-me e faz-me novamente olhar para o armário, estudando, avaliando, medindo as consequências de aceitar e assinar um acordo de paz com as garrafas escondidas. Desvio o olhar para o outro lado, para o sofá. Levanto-me e deito-me nele, estou mais confortável mas o sono não vem. Massajo as pernas e braços doridos de tantas horas passadas na alcatifa. Fecho os olhos e inspiro.
Não vais voltar, pelo menos não assim. Compreendo e aceito isso. É um facto imutável e derivativo da minha deficiência emocional. Não sei como relacionar-me com as pessoas e inevitavelmente viro-me para o álcool e isso destrói-me por dentro. Não sei como mudar isso, mas também não sei se consigo mudar isso. Não sei como evitar as noites de solidão e frio que levam um pouco de mim cada vez que passam, como imposto por me deixarem vivo para a noite seguinte, onde cobrarão novamente e cada vez mais. O sono não vem e as ideias também não. O copo continua no topo da garrafa. E vai continuar assim durante a noite.

10.7.07

Assunção

De pé, nas encruzilhadas, fitamo-nos
enquanto passado, presente e futuro
se espraiam lentamente à nossa roda.
Damos as mãos e sorrimos apenas
perante o tempo que se arroga sempre
dos nossos casulos físicos e efémeros
e envelhecemos calmamente saboreando
a paisagem colorida e repleta de luzes
que nos rodeiam e nos transportam
para onde pertencemos, para o fim.


RCA

Repentinamente

Ciranda pela casa como um fantasma solitário na noite
e passa a mão pela cal das paredes e sente-a fria.
A madeira das portas não devolve o calor do tacto
e o vidro das janelas escorrega pelos dedos caídos,
pendentes da mão ligada ao braço desnudado.
Senta-se no canto, aninhada contra a escuridão da noite
à espera que a sua vez chegue ou que possa dormir
e somente abrir os olhos para ver que o dia chegou,
sem sobressaltos nem pesadelos longos mais uma vez.
A loiça acumula-se pela casa, o pó assenta nos móveis,
o frigorífico aberto aquece e estraga a comida
que deixa um cheiro a morte a pairar no ar, a pairar pela casa.
Arranha as paredes com as unhas crescidas rebeldes
e o cabelo cola-se-lhe à cara que prossegue sem lavar.
Isolada naquele canto torna-se o cúmulo de tudo,
o cúmulo da displicência, o cúmulo do vazio que a preenche.
Não precisa mais de cuidar da casa, nem de cuidar dela
nem das aparências para os amigos que não tem
desde que se tornou assim como ficará para sempre.
Afinal, ela é uma viúva.


RCA

Miragens

Os teus ombros desnudados e o perfume doce de maçãs verdes
são como um truque de luz,
que entra pelas minhas pálpebras
que se fecham perante o sol que se põe.
Deixa-me chamar-te pelo teu nome;
chama-me o que quiseres.
Quero conhecer-te na rua onde costumas sorrir.
Quero viver na rua em que costumas passar para te ver ir.
Sinto os ossos insuflarem-se
sempre que o teu olhar cai sobre mim,
sinto as veias rebentar com a força do sangue
que ganha velocidade sempre que acidentalmente nos tocamos.
Diz-me só o teu nome;
levarei nos lábios para sempre
essas tuas simples palavras
para onde quer que vá.


RCA

Na forja

Novo conto, subdividido em várias partes. Apenas esperando que acabe a corrente publicação para subsequente divulgação.

Incursões em territórios alheios e desconhecidos serão tentadas de seguida.


RCA

5.7.07

20, ou a banda sonora da vida de nós os dois

18. Vince Guaraldi Trio - Christmas Time Is Here (Instrumental)

A porta que fechas encerra contigo aquilo que me queres dizer; não saberei até alguém me explicar. Fico aqui, deitado no sofá da sala, sem saber o que saber porque tu te foste embora e não me disseste quando voltarias.
Viro-me para o lado e a almofada está à minha frente e não pode, nunca, devolver-me o olhar que tu me devolves, cheio de amor, paz e vida. Reviro-me e penso em ti. Tudo me faz lembrar de ti; os sons que chegam da rua, a luz que entra pela janela do sol poente, as batidas do meu coração que sinto atropelar-me o peito. Fecho os olhos e imagino-me contigo, sozinhos, felizes. Nunca, nunca poderemos explicar aos outros a felicidade intrínseca à batida de uma música electrónica desconhecida que ambos partilhámos naquela noite e que será sempre, para sempre nossa. Nunca ninguém descobrirá o que sentimos ao ver as luzes descer sobre o horizonte e as sombras apoderarem-se da cidade inquieta. Ninguém sentirá como nós sentimos as horas passar sobre as horas que haviam deslizado na incontornável cadência do tempo e que nos inevitavelmente afastaram um do outro.
Começa a pingar. As gotas batem no vidro inexpugnável, como vidas caídas e mortas sobre a terra fria. A lassidão das gotas é própria da chuva que cai das nuvens cinzentas e depressivas que se recusam a brotar com força contra os humanos que sofrem à minha semelhança. Continuo deitado, à espera de algo, de um sinal, de uma epifania. Não voltas ainda, não chegas a perceber que necessito que regresses para não cair na espiral de sofrimento pela qual passei na última noite. Volta, por favor, para que eu não ceda à tentação de descender ao inferno outra vez para que quando subir, seja mais doce que nunca a saborosa exaltação da liberdade. Volta, por favor.
A chuva persiste; tal como a minha persistência. Não voltas, continuo a sofrer. Achas bem o que me fizeste? Sei que o que te fiz foi errado; disse-te que não me farias feliz, mas não te expliquei também que era incapaz de sentir felicidade nos moldes humanos, os quais as pessoas comuns julgam normais. Nunca serei capaz de entender aqueles que encontram a normalidade e consequente felicidade numa vida rotineira, que têm horas marcadas para que os cônjuges lhes digam que os amam e que dedicam uma hora por semana para a exclusividade do acto do sexo. Sentir-me-ia incompleto com tal vida.
O meu coração bate no meu peito, irrequieto. Voltarás? Deixar-me-ás? Se a chuva parar de bater ignobilmente contra os vidros, escutarás o meu apelo? Sentirás a deslocação do ar provocada pelos meus pulmões que se enchem de saudade tua? As rugosidades do sofá arrepanham-se por entre os meus dedos. Sinto a falta da tua pele macia que contrasta com a pele gasta que me pertence. Sinto a tua falta.
A chuva bate pausadamente, de acordo com as rajadas de vento. Vou até à janela e, com um gesto repentino, abro-a. Sou imediata e impiedosamente esbofeteado pelas águas e ventos que conjuram contra mim nesta tarde que morre para lá dos prédios. Cada minuto que passa é mais difícil; porque não me ligas e acabas com o meu sofrimento? Passo em seco todos os momentos em que estás afastada, passo em seco todos os minutos que não te sinto a meu lado. Passo em seco e sinto a necessidade de hidratar a secura. Combato. Combato com todas as forças, consciente que a única coisa que me mantém são é a consciência de tal defeito. Passo em seco duras horas em que a minha única companhia é uma garrafa com um copo virado ao contrário no seu gargalo e que só estou impedido de o tirar por ti.
A chuva cessa. O sol escorrega por entre os prédios. Escurece e as nuvens, contrariamente ao que seria de esperar, concentram-se ainda mais para engolfar a terra em escuridão. Passam os minutos mas não passam as horas. Estou condenado a uma tarde sem ti, a uma tarde em que o sono não vem por castigo pela porta que fito desde que tu a fechaste para não regressar. Estou condenado a uma tarde de reflexão, a única coisa capaz de me sufocar mais que a tua memória.A chuva recomeça. Regressam as bátegas incansáveis contra a muralha de vidro que são as minhas janelas, mas inexoráveis contra as torres defeituosas do meu coração e alma. Dilacerantes pela sua constância, dilacerantes porque existem. Condenado a tal existência, cedo ao cansaço de esperar por ti e adormeço num sono triste e mal iluminado em que tu não aparecias porque não sonhei.
Volta por favor para mim, para que eu te possa idealizar mais uma vez sem sentir o remorso latente a cada uma das vezes que me senti inútil. Volta, por favor.
A água preenche a minha janela, a saudade preenche o meu coração, a angústia preenche a minha alma. Volta por favor, para que a chuva pare; volta por favor, para que me possas ajudar; volta por favor para que seja novamente completo.