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21.10.07

Compreensão

Parte I - Chegar

Abro os olhos, como quem acorda, mas não é como se acordasse. Sei, instintivamente, que algo mudou, está diferente.

Deitado na minha cama, não ouço o reboliço nas ruas que seria de esperar. O sino da Igreja não bate as horas, não se ouve os ruídos do trânsito e as conversas das pessoas não chegam cá acima pela janela do meu quarto.

Levanto-me sem propósito a não ser aquele que tenho todas as manhãs: levantar-me, tomar banho, vestir-me, comer qualquer coisa à pressa, ir tratar da minha vida como um cidadão respeitável, se bem que quase todos os dias não sei porque o devo fazer. Mas hoje não sigo a rotina; se lá fora não o fazem, porque devo eu? E então visto-me e saio pela porta de casa.

Para minha leve surpresa, saio directamente para a rua. Um momento de estranheza e tudo encaixa. Foi como se sair pela porta de casa e entrar no pátio dos elevadores fosse uma coisa antiga, de casa dos nossos pais que não visitamos há anos, e se nos lembrássemos agora, numa reminiscência infantil. Não; agora é assim e não o devo questionar.

Vagueio pelas ruas imaculadas, solarengas. As árvores, viçosas e verdejantes, contrastam com o azul límpido do céu, expurgado de nuvens e traços de aviões. Os prédios apresentam, orgulhosamente, fachadas limpas e pintadas de fresco. Não há caixotes de lixo a transbordar e não se vê um jornal perdido a esvoaçar nas estradas libertas de carros. Devo ter entrado num modelo de cidade, pronto a estrear, esperando apenas que chegassem os seus habitantes.

Ao pensar em habitantes, apercebo-me que ninguém circula nas calçadas e vivalma assoma às janelas para me acompanhar neste passeio. Mas é natural, certamente. Foi como se tivesse acordado entre momentos do mundo e este ainda não tivesse carregado as pessoas para aqui viverem. Ando mais uns momentos, sem rumo nem destino traçado, até chegar a uma estação de metro. Algo me diz que devo entrar e faço-o sem questionar.

Dirijo-me às bilheteiras automáticas, mas não as há. Olho para as escadas que dão acesso ao cais e não vejo torniquetes. Sigo então para as linhas e vejo que um comboio me espera, de portas abertas, convidativo. Entro, sento-me, sempre sozinho.

As portas fecham-se e as carruagens, imbuídas de movimento, começam a abanar ao longo do túnel escuro que percorrem. Ao fundo, bem ao fundo, começa a surgir luz. O comboio desacelera e pára na estação. Deixo-me sentado enquanto as portas abrem e assim permanecem. Ao fim de algum tempo (não sei precisar se segundos ou minutos), compreendo que este comboio não vai a mais lado nenhum e apeio-me.

Sigo as indicações para a saída que aparenta ser a única. Não deixo de reparar na estação: majestosa, com abóbadas altas e bem iluminada pelo sol que penetra numa clarabóia imensa no topo. Uma estação que não destoaria da Inglaterra Vitoriana, penso. Subo as escadas sem dificuldade em direcção ao sol lá de fora, não o emprestado pelo vidro no tecto. Não deixo, mesmo assim, de ser momentaneamente ofuscado.

Pisco os olhos infantilmente durante alguns segundos. Depois, como que impelido apenas pela curiosidade, ponho-me em marcha outra vez. Esta dura apenas uns minutos pois, ao virar de uma esquina, vejo alguém. Sentado numa esplanada soalheira, numa praça ampla, liberta de obstáculos, onde o sol bate de forma convidativa, espera alguém. De mim, compreendo sem dificuldade. Aproximo-me e quando começo a distinguir as suas feições, levanta-se e saúda-me amigavelmente, como que a um companheiro de estudo ou trabalho ou equipa de longa data . Há algo na sua cara, nos seus gestos, no seu fato azul-escuro impecável, no seu nó de gravata perfeitamente encostado à gola da camisa branca imaculada, que me faz suscitar dúvidas: eu conheço-o, mas de onde? Como alguém conhecido mas há muito desencontrado. Percorro todas as minhas memórias mas não o sei localizar.

'Senta-te', diz ele apontando uma cadeira, enfatizando o convite. Silenciosamente, obedeço e sinto o sol a queimar-me de perfil, enquanto o meu lado direito permanece na sombra. Apercebendo-se do meu desconforto, abre um guarda sol que atravessa a mesa. 'Pronto, assim está melhor, não?'

Aquiesço silenciosamente. Antes de se sentar, pergunta: 'O que queres tomar? Não, espera. Eu sei. Volto já' e entra no café. Interrogo-me uma vez mais sobre quem será ele, o cavalheiro que tem o cabelo bem penteado e faces sem traço de barba. Perco-me em considerações até que o vejo sair do café, com um tabuleiro nas mãos e um jornal enrolado debaixo do braço. O café, num prédio antigo mas restaurado, aparenta ter mais idade que a minha multiplicada por seis: lá dentro, as traves que suportam o tecto são de madeira, como o balcão, as mesas e as cadeiras. Tem um aspecto acolhedor e amigável, mas cá fora há o sol, o azul do céu e... o cavalheiro de fato e gravata.

Pousa o tabuleiro e começa agora a servir chá de uma pequena chaleira de porcelana. Estende-me uma chávena e toma uma para si também. Olho para a minha: tonalidades laranja, como a indicar um equilíbrio que há muito não sentia, tremem sobre a mesa que está coxa.

'Ah! Espera' diz o cavalheiro. Toca com os dedos na perna na mais curta e esta toma o tamanho das suas irmãs; a mesa, agora equilibrada, deixa de tremer. 'Assim está melhor.' continua, fitando-me. 'Chá preto com tília. O teu preferido, não é?'

E enquanto tentava perceber como é que ele sabia aquilo, ouço o dizer: 'O que achas?' apontando para a cidade com o braço, num gesto de aparente orgulho, mas que secretamente era de despreocupação 'Perfeita, não é?'

1 Comments:

Blogger An@ said...

Um percurso aparentemente sozinho e acabas mais acompanhado que de ti prórpio ;)

Há quem nos conheça tão bem e nunca reparamos nisso... pena...mas acontece!!

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11:41 da manhã  

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