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10.11.04

Parte 6 - Redenção

A água escorre-me pela cara. A roupa molhada cola-se ao meu corpo; acho que nunca me senti tão desconfortável. Sinto o sangue escorrer-me pela mão, diluído pela água da chuva. Aperto ainda mais o ramo de rosas, até deixar de sentir a dor. A água purifica, traz a redenção. Talvez seja por isso que lágrimas quentes correm livremente pela minha cara, confundindo-se com as gotas da chuva.
Ao fim de uns minutos assim parado, dou os primeiros passos em direcção àquilo que é o meu destino final. Depois de três dias e duas noites de viagem, chego finalmente. Ouço trovões ecoar à minha volta e a chuva cai com mais intensidade. É como se a Natureza me quisesse impedir de fazer aquilo que vim cá fazer. O vento faz-me vacilar, a água tolda-me a vista e os trovões ferem-me os ouvidos. Reúno todas as minhas forças; tento andar mas não consigo. Penso em todos os momentos bons que tivémos juntos, ainda não dá.
Estou quase a desistir, quando um olhar me enche o pensamento. Uns olhos grandes e brilhantes, mas frágeis. O olhar com que me fitou, após a primeira vez que fizémos amor, há mais de vinte anos. Esta memória enche-me de calor e conforto, o mesmo que sentíramos aninhados nos braços um do outro. E essa força faz-me dar o primeiro passo. E o segundo, e o terceiro, e os outros, uns após os outros. Obedeço apenas ao coração, corro.
Até que chego. Páro. O calor abandona-me, a saudade esmaga-me o peito. A chuva, o vento, os trovões e todas as contrariedades páram também. Só falta agora um passo. Fecho os olhos, inspiro e expiro. Quando abro os olhos, já lá estou.
Ponho o ramo de flores na sua campa. Peço-lhe desculpa por não ter sabido fazê-la feliz, e por não ter estado com ela há um ano, quando tudo aconteceu. A chuva cai agora gentilmente, como se a Natureza chorasse comigo. Um choro silencioso e calmo, como as mães choram pelos filhos. Perdêmo-la e eu e a Natureza competimos para ver quem mais sofre. Tiro da carteira a última fotografia que tirámos juntos e despeço-me dela com um beijo. Deposito-a apoiada nas flores e desvio o olhar. Viro costas e vou-me embora. Sinto-me agora livre de qualquer peso e uma brisa fresca acaricia-me a cara. A vida pode agora continuar.

RCA