> Escritos: 36 + 77

26.11.04

36 + 77

Está frio e escurece. E mesmo assim, aqui estou, à espera. Quando expiro, consigo ver o vapor de água. Mesmo assim, não desisto e ficarei aqui enquanto for preciso. Só consigo pensar que daqui a bocado, estarei quente e confortável. Animado por pensamentos destes, mantenho-me impassível na minha espera. Mesmo contra os elementos, mesmo contra o tempo.
Vêem-se agora poucas pessoas na rua. Os indefectíveis como eu, penso. Alguns encolhem-se dentro dos seus casacos, outros andam em círculos para se aquecerem. Eu fico quieto, esfregando de vez em quando as mãos, para as manter quentes. Engraçado como as pessoas dizem que eu tenho sempre as mãos quentes, mesmo nos dias de frio glaciar. Não devem saber que por trás disso, há muito trabalho envolvido. Desenvolvi já uma metodologia de manter as mãos quentes, apetecíveis para aquecer as mãos de outras pessoas. E digo-vos que já conto muitos minutos da minha vida a aquecer mãos alheias. Sejam da namorada, da mãe ou da amiga. Mantenho uma certa ética profissional (se assim se pode chamar) e não aqueco mãos de rapazes. Talvez aos bebés e crianças pequenas, mas poucos são esses de quem tenho o prazer de aquecer mãos. Acho que uma das maneiras de me definir, para lá do "estranho", "confuso" ou até "parvo e doido" será mesmo pela minha faceta de gostar de aquecer as mãos das outras pessoas. É uma maneira de lhes aquecer os corações, que querem que vos diga? Delas e o meu...
Chegou! Com esta distracção, nem reparo que finalmente está cá. As pessoas que estão na paragem acotovelam-se para entrar no autocarro, que nos levará para onde quisermos, que nos manterá quentes até ao nosso destino. Os passageiros sentam-se em grupinhos, na tentativa de manter o calor humano perto delas. Escolho um lugar algo afastado das pessoas todas; gosto de me sentar sozinho, tenho assim oportunidade de as observar. Outra das minhas características é ser observador. Registo tudo, mesmo que depois não faça nada com isso. Às vezes até faço; como acham que arranjo material para escrever? Se calhar um de vocês que me lê agora já foi incluído numa estória e nem notou. Seja um traço da vossa personalidade, qualquer coisa que digam, qualquer coisa que façam ou simplesmente vocês, mas com outro nome. Nunca repararam?
De volta à realidade, dedico-me a perscutar o autocarro. O condutor vai falando enquanto guia com um daqueles habituées da carreira, que já anda neste autocarro vai para uns anos. Parece-me que já se conhecem há algum tempo, pelo tom de familiaridade da conversa. Está sentado no lugar ao lado do condutor e vão falando sobre tudo e sobre nada: política, bola, estado do tempo, mais bola, curiosidades várias. Desvio o olhar e a atenção agora para a mãe que leva o filho ao colo. O bebé não tem mais que um ano e meio. É giro, o rapazito. Irrequieto, não deixa a mãe em paz durante mais do que uns segundos. A mulher, ao fim de alguns puxões por parte do filho, finalmente decide dedicar-lhe a atenção que ele merece. Deve sair ao pai, não tem traços nenhuns da mãe. Ou então a um dos avôs...
Uma travagem brusca faz-me interromper as minhas cogitações. Olho lá para fora. Trânsito; agora é que nunca mais lá chego, penso com alguma desilusão. Fico a olhar então para a rua. Como estou acima do nível dos carros, não dá muito bem para ver o que se passa dentro do habitáculo dos mesmos. Na calçada, porém, o espectáculo é bem mais interessante. Desde o simples vagabundo, ao empresário no seu fato de lã a falar ao telemóvel. Da dona de casa que regressa carregada com os sacos de compras à jovem que corre apressada para a paragem de autocarro. Uma variedade de pessoas mas de côr nem muita. Toda a gente veste cinzento ou preto, as circunstâncias assim o ditam. O Outono, quase Inverno, carrega impiedosamente e faz soprar um vento gélido, que obriga-nos a apertar o casaco ainda mais, a usar cachecol, luvas e gorro. Passamos agora a complicada rotunda e o autocarro abranda ao chegar a mais uma paragem. Alguns entram, alguns saiem. Num exercício de rapidez, o condutor vai já em andamento enquanto fecha as portas. Parece que me leu os pensamentos, de querer ir mais depressa. Ou se calhar também tem alguém à sua espera. E sabe, como eu, que o tempo e a distância que nos separam são enormes, que só com a força do pensamento dos braços abertos que nos receberão, nos fazem partir para a viagem de regresso, por mais dura que seja.
Estamos no parque. A humidade ergue-se no ar, como uma entidade. Confere um certo ar místico a estes jardins no meio do betão e alcatrão que fizeram crescer a cidade inexoravelmente à sua volta. O pára-arranca a que estamos sujeitos, mesmo na faixa reservada aos transportes públicos, por causa do trânsito enerva-me. Injurio mentalmente os condutores. Não consigo perceber como é que alguém pode guiar tão devagar. Eu, que nem sei guiar, andaria a uma velocidade maior, porque sei que é uma maneira de não irritar os outros condutores e passageiros de autocarros, como é o meu caso. Se todos pensassem como eu... Seria o mundo bem melhor? Bem, seria mais simples, isso é uma certeza.
Já so falta uma paragem! E depois é so mudar de autocarro... Ou subir a colina. E agora? Esperar cinco a dez minutos ao frio ou andar ao frio? Opto pelo comodismo. Quando o autocarro pára, saio e dirigo-me à outra paragem. Ainda ando um bocado, mas faz-se bem. E a sorte protege realmente os audazes: está lá à minha espera. Entro e sento-me. Este condutor não é tão diligente como o outro; ainda ficamos uns minutos à espera que entrem mais passageiros, que não aparecem. Pomo-nos finalmente a caminho. Sempre a subir, lentamente mas de forma pragmática. Não há pressas, só os arranques necessários para não deixar descair o veículo. Interessante como já se faz todos os gestos de forma rotineira: pousar o pé na embraiagem, pôr nova mudança, levantar o pé da embraiagem e dar um cheirinho com o acelerador, virar o volante, mandar uma boca ao condutor do carro que não ata nem desata e engonha no meio da estrada. Abstraído, nem reparo que quase deixava escapar a minha paragem. Levanto-me de um salto e carrego no botão para parar. Ouço o chiar dos travões que me é familiar e as portas abrem-se. Saio e ponho-me a caminho. Só mais uns metros...
Toco à porta. Abre-se e entro. Está tão quente cá dentro do prédio! Subo no elevador e mal consigo manter a calma. Afinal, chegarei a casa dentro de segundos. Quando o elevador pára, precipito-me para a porta de casa. Toco insistentemente até que ela abre. Estende os seus braços para mim e puxa-me para dentro. Deixo que ela me puxe para junto de si, para junto do seu corpo quente.
Cheguei a casa. Mesmo não sendo a minha, "casa" é o sítio onde o homem se sente confortável e está com as pessoas de quem mais gosta. Estou então em casa, junto da pessoa que mais gosto.

RCA