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10.11.04

Redenção - Parte 2 - Comboio

Já com o comboio em movimento, embarco. Dirijo-me até à minha carruagem e procuro o meu lugar, para me sentar. À parte de mim e de duas raparigas, a carruagem vai vazia. Interrogo-me para onde irão, a esta hora da noite. Concluo que a minha situação também não é muito comum, e deixo de pensar nisso.
A chuva volta a saudar-nos, desta vez a bater com alguma violência contra a janela. Não irá ser uma viagem fácil, reconheço, quando o vento começa a assobiar nas frinchas das janelas, já gastas com o uso e a precisar de reforma. Nada é eterno, e aqui está a prova disso mesmo.
Ouço um riso e volto a cabeça; uma das raparigas ria-se com vontade de algo que a outra tinha dito. Tem piada, pensava que estavam a dormir. Uma escapadela, só pode ser isso. Ou então vão esperar alguém ao aeroporto, um rapaz mistério. Percebo agora que quando dizem que os tempos mudam, mas as pessoas não. Há vinte anos, fazíamos o mesmo. Apanhávamos o primeiro comboio na estação e saíamos no sítio para onde o dinheiro que tínhamos nos bolsos pudesse pagar o bilhete. Era o nosso meio de transporte preferido. Adorávamos ver as paisagens espraiarem-se à nossa volta, passando vagarosamente ou céleres, conforme o comboio em que estávamos. Sentindo a presença de alguém ao meu lado, regresso das minhas deambulações e reparo que uma das raparigas me pede lume. Quando percebe que não fumo, faz um ar desolado e volta para junto da amiga. Atiram-me uns olhares de esperança, não devem saber que tenho mais uns quinze ou vinte anos que elas, mas sempre pareci mais novo. Era, aliás, uma das coisas que a atraía: o meu ar de criança. Achava-lhe piada, costumava dizer que eu era filho dela e que tinha que tomar conta de mim. E eu gostava, não nego.
Devolvo os olhares às raparigas. São girinhas, mas novas. Demasiado novas. Houve o tempo em que isso não me importava, antes de saber que na verdade importava. Foi no tempo do desvairio, em que procurava no corpo o prazer que não tinha na alma. Foi no tempo da dor constante. Sim, tinha o contacto da pele, os gemidos ao ouvido, os cheiros afrodisíacos, mas nunca ninguém pôs os seus braços à minha volta daquela maneira. E isso fazia toda a diferença.
A paragem vai ficando para trás cada vez mais devagar, devemos estar a abrandar, a chegar. Levanto-me. Recolho o meu casaco e passo pelas raparigas. Ouço um assobio que se confundiu com os do vento, mas ouvi. Antes de parar completamente, já tinha eu posto um pé no chão da plataforma. Afasto-me rapidamente, na esperança que as recordações fiquem para trás e não me atormentem, assim como as caras daquelas duas raparigas, que agora já desejava.