> Escritos: 10.2004

27.10.04

Toru

O horizonte balanceia suavemente. À minha volta, dunas erguem-se e desfazem-se com um simples toque do vento, árido com um beijo seco vindo do interior do deserto. Afago o pescoço do camelo onde estou sentado. Fiel animal, suporta carga e quilómetros que nós, humanos, nunca conseguiríamos. Por isso mesmo viajo num. Já não tinha forças para continuar e, num gesto de misericórdia, deixaram-me trepar para o dorso deste peculiar bicho. Ao longe, o céu convida-nos tentadoramente a mergulhar no seu azul, para nos refrescar, como se de água se tratasse. Mesmo assim, a viagem prossegue. Lutando contra o calor implacável e a aridez sufocante. Desmaio por não ter forças para lutar contra mais um inimigo, a Natureza.

No meu sonho estou livre. Há música à minha volta, as pessoas usam todas um sorriso e o ar é de uma fresca doçura. Consigo cheirar perfumes exóticos, que me trazem lembranças. Lembranças de dias melhores, lembranças de vidas anteriores. Traz saudade. E vejo-a. Embora indefinidas as suas formas, consigo ler o seu pensamento. Vem para me levar para um sítio melhor, para me levar para junto delas. Acaricia-me a cara e dá-me água para beber. E, de repente, um estalo. Acordo. A azáfama que me rodeia faz-me perceber que estamos num oásis. Aqui, negoceia-se de tudo. Desde tecidos a vidas humanas, tudo é regateável. Olho impotente para as outras pessoas; não sabem, nem sonham que quero pedir por ajuda, mas não posso.

No resto da tarde, percorremos tanto caminho como durante a manhã. Caminhámos até à noitinha, quando está mais fresco. O vento sopra agora do mar e a brisa salgada é um contraste estonteante com o cheiro a excrementos de camelo. Embriagado por tal aroma de liberdade, sou levado para a tenda grande, entretanto erguida. O pouco que sobra da comida dos berbéres é-me dado. Ataco o jantar sôfregamente; não como há dias. Devem ter percebido que precisam de um prisioneiro com mais forças, para percorrer a última extensão do deserto, que nos levará ao destino da nossa viagem. A música e a conversa instalam-se no ar, e os homens do deserto montam os seus cachimbos de água. O fumo envolve toda a gente, numa espécie de nevoeiro aromático. O meu olfacto enloquece com tanta diversidade. Se não estivesse nas condições em que estou, até era capaz de gostar disto, penso. As pessoas à minha frente começam a ficar difusas. O som torna-se cada vez mais lento e as nuvens de fumo começam a ganhar contornos estranhos.

Ando por entre as ruas de uma cidade deserta. O mar, como uma jóia azulada, estende-se à minha frente, infinito. Saboreio o doce gosto de uma sombra, enquanto me sento para descansar. Estou esgotado. Sei que isto é só um sonho, mas parece tão real. Vejo-as. Levanto-me, dorido, e caminho na sua direcção. Uma das figuras que estão a contra-luz, a mais pequena, larga a mão da outra e corre para mim. Estou surdo aos seus chamamentos, consigo ver a sua boca a mexer. Ajoelho-me para a receber nos meus braços. Aperto-a contra o meu peito, afago os seus cabelos encaracolados. Beijo a sua bochecha rechonchuda de criança e digo-lhe que a amo muito, mais do que tudo o que existe no mundo. Ponho-a no chão e dou-lhe a mão. Vamos assim juntos, pai e filha, para junto da minha mulher. Largo a mão da minha filha. Sinto braços a envolverem-me o pescoço e beijos quentes na minha cara. Lábios salgados tocam agora os meus. Procuro no abraço da mulher que amo o consolo necessário para as próximas horas.

Ouço a minha filha brincar lá fora. Cá dentro, está fresco e agradável. Ela fita-me, eu devolvo-lhe o olhar. Não falamos, não precisamos. Beijamo-nos, para nos confortarmos. O seu vestido cai, ela tira-me as roupas. Naqueles minutos em que estamos juntos, o tempo pára. As suas mãos acariciam-me o peito, sinto o seu cabelo na minha cara enquanto me segreda ao ouvido as saudades que teve de mim. Sinto as suas coxas apertarem as minhas, enquanto se aproxima mais de mim. Hesita durante uns segundos, mas continua, firme e segura. O contacto com a sua pele nua é estonteante. Atrevo-me a tocar-lhe, e as minhas mãos ressentem-se da temperatura escaldante a que ela está. Contrario a razão e cedo ao impulso de pôr as minhas mãos nas suas longas pernas. Os meus dedos deslizam pelas suas coxas e sinto as suas vibrações. Agarro com força as suas nádegas, comprimo-a contra mim. Sinto prazer na sua carne, e pelos seus gemidos, sei que ela também. Fundimo-nos num só e os seus gritos ecoarão para sempre nos meus ouvidos.

O sol intenso faz-se sentir, não há como escapar-lhe. Caminhamos há horas, e desta vez tenho que acompanhar a caravana a pé. De repente, um grito. Alguém avistara o mar e, por consequência, a cidade portuária, para onde nos dirigimos. Mais umas horas de andamento, e chegamos. Resignado, avanço por entre as pessoas que ocupam as ruas que nessa noite vira no meu sonho. Levam-me para um curral, onde encontro outras pessoas como eu. Foramos todos levados até ali, para uma execução em grupo. Alguns choram, outros aceitam o destino. Eu sou um desses, pois sei que não estarei só, na partida. Sei que voltarei para junto da minha mulher e filha, sei que viverei feliz com elas. Eles aproximam-se, sei o que vai acontecer. Erguem as cimitarras, e os silvos das lâminas a rasgar o ar começam. É um dos últimos sons que ouço. Depois, o riso da minha filha enche o ar, e ouço a minha mulher chamar por mim.

RCA

Em cima do joelho

Decidi não fazer aos outros aquilo que me fizeram. Estou a escrever um conto, pequeno, mas com alguma carga emocional, que publicarei aqui daqui a bocado.

Gostava também de dizer que, apesar de escrever isto para mim, há uma pessoa que gostava muito que lesse o que eu escrevo. Não lhe posso mostrar, mas também agora duvido que queira ler. Quando puder ler, penso que estas palavras, escritas e não ditas, nunca terão o impacto podem ter.

Até já.

RCA

Hoje é o dia da desilusão

Hoje, não dá.
Hoje, não há.

RCA

20.10.04

Esclarecimentos - Parte III - Fim

- E assim chegamos à terceira e última parte. Após esse tempo, o Rodrigo disse que precisava de mim. Eu também precisava dele e voltámos a estar juntos. Eu era agora muito feliz, porque ele também era feliz. Éramos felizes. Foi então que a Inês apareceu. Eu já a conhecia, mas o Rodrigo não. E conheceu-a, por acaso, numa viagem que fizeram. Eles os dois e mais gente. Mas não fiz muito caso; afinal, ele conhecia imensas raparigas e não era agora uma que iria causar problemas. Mas ele voltou diferente... E, mais tarde, quando numa ocasião em que nós os dois estivémos com a Inês e as amigas dela, eu começei a sentir perigo. Ele estava muito tempo, a meu ver, com elas. Foi talvez egoísmo meu, devia ter dado-lhe espaço para fazer amigos e amigas, mas não conseguia. E foi por isso que tudo aconteceu, e foi por isso que estamos todos aqui hoje. Porque ele queria outra vez um tempo para pensar, espaço só para ele. Fui orgulhosa e decidi que não. Se ele queria um espaço, então ia tê-lo definitivamente. Na altura, discutíamos bastante, quase sempre por culpa minha. Não faço aqui papel de vítima, sei muito bem que a maior parte das vezes, era eu que estragava a nossa relação. Então acabámos. Apenas um dia depois apercebi-me do erro tremendo que tinha cometido, mas sou muito orgulhosa para voltar assim atrás. Percebo agora que o orgulho é mau para uma pessoa que ama outra. Ele seguiu o seu caminho e eu, o meu. Só que não há duas sem três, não é? - falava agora com lágrimas a cairem livremente pela cara, já não as tentava conter - Um dia, o Rodrigo chegou ao pé de mim e disse-me que tinha estado com a Inês. Disse-me que tinha sido uma coisa da ocasião e que não haveria mais nada entre eles. Uma coisa carnal, conclui eu. Mas porquê? Porque é que era sempre ele a ceder a esses impulsos? Fiquei... chocada. Mesmo sabendo que ele não seguiria nenhum relacionamento com a Inês, fiquei inquieta. Também era impossível, a Inês mora quase a 300km de Lisboa... Sabia que três vezes eram vezes demais. E decidi agir. É por isso que estamos todos aqui.
- Mas... Não percebo... Rita, o que é que queres... - a Inês falava lentamente, tentando perceber o que é que tinha feito de mal, para estar ali.
- Pois não, não percebes. É natural. Só que desta vez, nenhum está isento de culpas. Tu, Rodrigo, porque durante a tua vida toda, viste a Inês umas 5 vezes. E tu Inês, porque sabias perfeitamente que... - a Rita procurava as palavras quando a Inês a interrompeu.
- Mas se vocês nem sequer andavam na altura... O que é que eu fiz de mal? - disse a medo.
- Foi a gota de água, percebes? Tu és uma coitadinha que anda por aqui, és um acaso. Não é por seres tu especialmente, ou se calhar até é, mas é mais por ele - ao dizer isto, apontou a pistola para o Rodrigo, de forma negligente, que este até se assustou, com medo que aquilo disparasse inadvertidamente. A Rita apercebeu-se disto e aproveitou - Com medo, Rodrigo? Ou queres refutar alguma das minhas acusações? - usava agora um tom de escárnio.
- Eu só acho que estás louca... Porque é que estás a fazer isto, Rita? Não poderias simplesmente ter-me dito isso tudo, sem teres feito esta palhaçada toda? Tu é que estás a ceder a impulsos, neste caso violentos... Foste sempre assim, era por isso que nunca dava certo, era por isso que eu pedia tempo para pensar e respirar, sequer... - disparou o Rodrigo. Tentava agora tomar conta da situação. - Eu sempre gostei de ti, eu sempre te amei, mas tu oprimias-me. Às vezes parecia que não conseguia respirar sem ter que te dar justificações. Isso doía, Rita.
- Achas que eu não sei? Achas que não estou suficientemente arrependida? Eu só queria ter-te perto de mim... Tinha tanto medo de te perder! Mas é a história da minha vida: erro após erro, e raramente aprendo a lição. - A Rita falava com uma voz amarga e a Margarida começou a sentir pena dela. - Mas o que mais doeu foi toda a gente ter-se passado para o lado dele... Todos os nossos amigos em comum, até pessoas que eu conhecia há mais tempo, todos ficaram do lado dele. Porque ele era mais giro, era mais fácil gostar-se dele... Até hoje, acho que a única pessoa que realmente me percebeu foi o Rodrigo, mas também não me percebeste... Não percebeste que preciso que alguém esteja sempre ao meu lado, não percebeste...
- Rita, porque é que não pões a arma no chão, e nos soltas? - Perguntou o Rodrigo - Não achas que seria melhor se acabasses com isto?
- Não és tu que tomas as decisões! Houve tempos em que sim, eu cedia a tudo, Rodrigo, mas agora não. Agora sei o que tenho a fazer. Não vou tomar as minhas decisões, mas também não vais ser tu. Vai ser esta menina - disse a Rita enquanto afagava o cano da pistola.
- O quê!? Estás maluca? - gritou a Joana.
- Eu deixei-te falar? - perguntou a Rita - Então cala-te, senão és calada à força! - Ao ouvir isto, as três raparigas e o Rodrigo encolheram-se. Já tinham percebido que ela não estava a jogar com o baralho todo.
- Rita... pensa bem no que estás a fazer... De certeza que não queres matar alguém... O que é que elas te fizeram? Deixa-as ir em paz... Ficamos só aqui os dois, ficamos a conversar...
- Eu não gosto de falar, Rodrigo. Eu só digo aquilo que acho que seja estrictamente necessário ser dito. E acho que estamos a chegar ao fim. - Ao dizer isto, a Rita virou-se de costas para o Rodrigo e não viu o que ele estava a fazer.
O Rodrigo tinha estado a maior parte do tempo a tentar romper as cordas que amarravam os seus pulsos, por fricção nos bordos de metal da cama. E consegui soltar-se, estava agora só à espera de uma oportunidade para inverter a situação. E quando ela chegou...
Levantou-se de um salto, agarrou a Rita por um braço e com o outro agarrou na pistola. Empurrou-a para longe e apontou-lhe a pistola. Era a vez dele de controlar.
- Rodrigo, antes de fazeres qualquer coisa, lembra-te só que eu amo-te. - disse calmamente a Rita.
- Eu sei. Pena é que não me deste oportunidade de te dizer o mesmo antes de me trazeres até aqui. - replicou o Rodrigo.
- O que é que vais fazer? - perguntou ela.
- É como tu disseste, Rita. Às vezes devemos deixar que a pistola tome as decisões por nós. E agora vai ser assim. - o tom da conversa era cordial. Era estranho que as duas pessoas que estavam naquela situação, fossem duas pessoas que se amavam tanto.
- Amo-te - disse a Rita.
- Eu também - disse o Rodrigo, e premiu o gatilho.
Nada. Não houve disparo.
- Achas mesmo que eu me poria numa situação em que te poderia magoar, Rodrigo? Ou que me pudesses magoar? Mas agora já sei... - Ao dizer isto, a Rita virou-lhe costas e dirigiu-se para a porta do armazém. Atrás dela, o Rodrigo deixou-se cair ao chão enquanto chamava por ela.
- Rita, espera! Espera! Desculpa... desculpa! Eu amo-te! - Chorava convulsivamente.
Calmamente, a Rita saiu. Apanhou o sol na cara, tinha nascido o dia entretanto. Inspirou o ar fresco da manhã. Apesar de tudo, ainda amava o Rodrigo. E sabia que iria ser assim para o resto da sua vida.

RCA

Esclarecimentos - Parte II - Meio

- Rita, estás maluca! Larga isso! Onde é que arranjaste uma pistola!? - gritou uma vez mais o Rodrigo, enquanto se tentava soltar - Pensa bem no que vais fazer! Não podes matar assim uma pessoa!
- Quem disse que ia matar alguém? Isto é só um objecto de persuasão... Quanto a como a arranjei, já alguma viste ouviste dizer que quando uma pessoa quer muito uma coisa, acaba por a conseguir ter? Então... - explicou a Rita - E agora chegou a altura de sabermos o que realmente... - foi interrompida por um murmúrio vindo de uma das camas. Os dois olharam para uma das camas da ponta e viram que uma das raparigas estava a acordar.
- Olá Inês, dormiste bem? - perguntou a Rita num tom irónico.
- Onde... Onde estou? O que é que... - a Inês não acabou a frase ao reparar que a Rita tinha uma pistola na mão. Aterrorizada ficou a olhar para ela, sem reparar que havia mais gente à sua volta.
- Tem calma, isto vai-se resolver... - disse o Rodrigo num tom calmo, a tentar controlar a situação. A Inês reparou então nele, que estava sentado também numa cama, e também amarrado. Olhou para os lados e viu também mais duas raparigas: uma era-lhe ligeiramente familiar, a outra nunca tinha visto na vida.
- Rodrigo? Rita? O que é que se passa? Porque é que tens uma arma, Rita?
- Estamos só à espera que as outras raparigas acordem para que o Rodrigo se explique, Inês... Ninguém vai fazer-te mal, está descansada. - a Rita estava agora em completo domínio da situação, porque o Rodrigo apercebeu-se que ela estava consciente do que estava a fazer. Desistiu de tentar soltar-se e ficou quieto e calado, à espera.
Passaram ainda alguns minutos, até que as outras duas raparigas acordaram, mais ou menos simultaneamente. Após alguns segundos de perplexidade, a Rita começou a falar:
- Agora que a Margarida e a Joana acordaram, já posso começar a explicar o que é que estamos todos a fazer aqui.
- O que é que estás a fazer, Rita? Estás maluca? - disse a medo a Margarida.
- Cala-te! Vocês as três vão estar muito caladinhas. Só eu e o Rodrigo é que vamos falar e vocês só abrem a boca quando eu mandar! - Gritou a Rita, brandindo ameaçadoramente a pistola.
- Rita... - começou o Rodrigo. Com um ar de desprezo, a Rita mandou-o calar.
- Como eu estava a dizer, estamos aqui reunidos para ver se o Rodrigo é mesmo um homem! Vocês as três sabem que eu e ele namorámos durante muito tempo. Meses e meses a fio em que não podíamos viver um sem o outro. Ou pelo menos pensava eu. - a Rita tinha agora um ar triste - Porque quando acabávamos, eu pensava que ele ainda gostava de mim. E se calhar até gostava, porque era eu que acabava e ele nunca queria. Sei agora que foram estupidezes, porque senti como nunca a falta dele nesses tempos em que estive sozinha. Estive sozinha, mas o Rodrigo não. Ele conseguia sempre seguir em frente e eu ficava espantada. Mesmo quando os amigos dele me diziam que ele só estava com outras raparigas porque era um coisa carnal, ele ainda gostava de mim. Mas então porque é que ele cedia sempre aos impulsos? Eu nunca fiz nada disso, sempre tive calma. Nunca o traí, e podia tê-lo feito, e nos tempos em que não estávamos juntos, só estava com um rapaz de quem gostasse mesmo. Apesar de nunca ter gostado de um rapaz, como gostei dele... e ainda gosto... - disse a Rita, cada vez mais triste. Estava cabisbaixa e o Rodrigo sabia que ela poderia irromper em lágrimas a qualquer segundo.
Ficaram assim em suspenso uns minutos até que a Rita levantou a cabeça. Tinha os olhos húmidos mas conseguiu manter o controlo. Recomeçou então a falar:
- E chegamos então à primeira parte desta história. Ainda éramos os dois novos. Andávamos há algum tempo, mas eu decidi que não estava a correr bem. Já não me conseguia dedicar tanto a ele e via que ele ficava magoado quando isso acontecia. Decidi então acabar. Eu penso que até foi um gesto altruísta... Eu sabia que não o estava a fazer feliz, então soltei-o, mesmo sabendo que eu depois viveria na incerteza. É que enquanto o Rodrigo era um rapaz bonito e que não teria problemas nenhuns em arranjar outra rapariga, eu não era muito bonita e não teria tanta facilidade como ele. E não tive mesmo... E é aqui que aparece a Margarida. Eles os dois já tinham namorado antes de mim e do Rodrigo. Não era surpresa nenhuma de os dois se darem bem, o que foi uma surpresa foi que eles os dois curtissem uma semana depois de eu ter acabado com o Rodrigo. Uma coisa bastante física, para a idade que tínhamos, na altura. Mas eu nada disse, porque sabia que éramos novos e pensei que fosse uma coisa da idade. Não estou a culpar a Margarida, porque provavelmente não saberia que eu e ele tinhamos uma relação especial. Durante algum tempo, achei que o Rodrigo já se tinha esquecido de mim, mas mais tarde disseram-me que tinha sido só uma coisa carnal, que eu o tinha magoado e que ele estava... vulnerável. Ele próprio mais tarde disse-me que tinha sido um erro. E eu acreditei, por amor. Até porque nunca deixei de gostar dele...
A Margarida nada disse e o Rodrigo começou a pensar onde é que a antiga namorada queria chegar. Se ia fazer aquilo para as outras duas raparigas, então as coisas poderiam começar a ficar feias, pois a Rita estava agora com um ar cada vez mais sinistro. A sua própria voz estava irreconhecível; tinha um tom calmo, contido e ao mesmo tempo magoado, mas também se notava uma certa raiva crescente.
- Estivémos separados durante algum tempo, um ano e tal. Nessa altura, ele teve os seus relacionamentos, e eu tive os meus. Sabia que ele era feliz, e isso bastava-me. Foi nessa altura em que ele começou a andar com a Joana. Uma coisa das férias, até porque a Joana é mais velha. Quando se acabaram as férias, já era diferente. Ele próprio disse-me que as coisas entre ele e a Joana não iam muito bem. Algum tempo depois, o Rodrigo disse-me que tinha acabado com ela. Fiquei feliz, porque tinha agora a oportunidade de fazê-lo voltar para mim. E foi o que aconteceu. Mas os relacionamentos nunca são perfeitos e houve uma altura em que decidimos dar um tempo. Eu percebi porque é que ele queria um tempo, foi por culpa minha, básicamente. E durante alguns tempos até correu bem. Falávamos normalmente, mas parecia-me estranho estar com ele e não poder abraçá-lo nem beijá-lo, mas ele queria o seu espaço e eu respeitei a sua vontade. Até que ele veio ter comigo e disse que tinha uma coisa muito importante para me dizer. Fiquei com medo que ele me quisesse deixar, mas aguentei a ansiedade. Foi então que ele me disse o que é que se tinha passado: durante o tempo em que não estivémos juntos, ele tinha estado com a Joana. Curtiram e só espero que se tenham ficado por aí; o resto não sei porque ele não me contou. Não tive outra opção senão perdoá-lo, porque o amava muito e não o queria perder. Só que esta foi uma daquelas coisas que não podia ficar impune, já que estamos numa onda de esclarecimentos. Aqui culpo os dois pela situação. A Joana por sequer ter tentado curtir com o Rodrigo e culpo-o a ele por ter cedido. Não percebo é como é que a Joana teve coragem de fazer o que fez, mesmo sabendo que ele tinha uma namorada, mesmo estando a dar um tempo. Ou se calhar o Rodrigo não lhe disse...
- És uma frustrada! Eras uma miúda para ele! Ele precisava de alguém mais responsável e com mais experiência do que tu! - gritou a Joana, tentado libertar-se.
- E tu és uma puta! Eu posso ser uma frustrada, - disse a Rita, enquanto armava a pistola e encostava-a à testa da Joana - mas quem é que tem uma pistola encostada à cabeça? - tinha um ar calmo e satisfeito; era aquela a vingança que planeava? Tencionava matá-los a todos?
- Tem calma Rita, não te ponhas em situações das quais não podes sair - aconselhou o Rodrigo.
- Eu sei Rodrigo, estou só a apreciar o momento... - a Rita tinha um sorriso nos lábios e começou como que a dançar à volta das camas, com a pistola agora junto ao peito. Era bizarro.

Esclarecimentos - Parte I - Princípio

Abriu os olhos lentamente. Ainda sentia a cabeça andar à roda e teve que fazer um esforço hercúleo para se soerguer. Olhou à sua volta: estava deitado numa cama, que parecia estar no meio de um armazém vazio.
- Bom dia, Rodrigo, ou deveria dizer, boa noite? - ouviu atrás de si.
Virou lentamente a cabeça e viu-a.
- Rita!? - exclamou, incrédulo - O que é que se passa? O que é que aconteceu? Onde é que eu estou?
- Calma... As coisas a seu tempo. - disse a Rita.
Levantando-se da cadeira, andou até à cama onde estava deitado o Rodrigo. Este aproveitou para a ver melhor. A Rita tinha uns 24 anos, não era muito alta e os cabelos castanhos e compridos contrastavam com a brancura da sua cara. O seu sinal mais característico era, talvez, os seus olhos: castanhos, normais, mas tinham um ar ausente, vago, às vezes assustador. Não era uma rapariga própriamente muito atraente, mas tinha um aspecto de pessoa em quem se podia confiar. Mas naquele momento o Rodrigo já não percebia nada e sabia que, acima de tudo, ela não deveria estar muito bem da cabeça.
- Bem, acho que já chega de brincadeiras, vou-me embora. - anunciou o Rodrigo, enquanto se levantava. Mas ao fazê-lo soltou uma exclamação surda: os seus pulsos tinham sido amarrados à cama - O que é que se passa aqui? Porque é que estou preso a esta cama, Rita?
- És um bocado impaciente... Mas está bem, vou-te contar porque é que estamos aqui. Estás atado a essa cama porque era a única maneira de eu fazer-te ouvir o que tenho para dizer - explicou a Rita enquanto se aproximava mais da cama. Viu que ele estava com um ar verdadeiramente espantado e confuso, o que não era normal no Rodrigo. O Rodrigo era um rapaz também de 24 anos, por sinal parecido com a Rita, mas mais moreno e talvez um pouco mais baixo. Tinha os olhos verdes e o cabelo também era castanho. Era, na visão das raparigas, muito, muito giro. Aparentava normalmente um ar calmo, mas agora estava inquieto. Sabia que a Rita era capaz de muitas coisas, mas nunca pensou que era capaz de o prender a uma cama só para falar com ele!
- Não achas que chega de joguinhos? Já quando andávamos tinhas estas manias, mas isto? Rita, o que é que se passa? - perguntou o Rodrigo, com uma voz calma, a contrariar o aspecto da sua cara.
- Não me venhas com essa vózinha! Eu sei muito bem que tentas sempre convencer toda a gente assim. Afinal, não foi assim também com as outras? Eu sei, Rodrigo, eu sei... E é por isso que hoje estamos todos aqui!
- Todos? Todos quem? - Ele estava cada vez mais a leste do que se passava.
- Olha ali para o fundo. - A Rita apontou para um canto e ele reparou em três camas que ainda não tinha visto. E nelas...
- Quem é que está ali? Mais gente!?
- Agora é só gente, Rodrigo? Sim, também suponho que para ti foi só uma coisa carnal, porque tu disseste que ainda gostavas de mim... - A Rita disse isto com um ar meio irónico, meio entristecido. Caminhou para as três camas e trouxe-as uma por uma para junto da cama onde estava o Rodrigo, uma vez que as camas tinham rodas. O Rodrigo viu então horrorizado que, deitadas nas camas, estavam três raparigas.
- Margarida? Joana? Inês?! O que é que lhes fizeste???
- Calma, elas estão só a dormir... Daqui a pouco já acordam. Depois pomos todos a conversa em dia - disse a Rita com um ar sinistro. - Entretanto, vamos nós falando. - trouxe a cadeira para junto dele e sentou-se novamente - Sabes porque é te trouxe a ti e a elas todos cá? Para ver como é que vais reagir a isto, porque tu arranjavas sempre uma desculpa ou uma explicação. E agora quero ver se manténs a tua palavra em frente delas, se tens mesmo carácter.
- Solta-me! Solta-as! O que é que estás a fazer, Rita? Estás louca? - gritou o Rodrigo.
- Se calhar agora estou... Em tempos estive louca, mas de amor... Por ti, Rodrigo, e tu sabes muito bem. Mas acho que sempre preferiste brincar um bocado com os meus sentimentos. E agora vais perceber que isso não se faz. - estranhamente calma, a Rita foi buscar um objecto que estava em cima de uma mesa encostada à parede. Quando voltou, trazia na mão uma pistola.

Desatino

Desatino. As ideias correm-me pela cabeça e escondem-se em cantos escuros, onde não as posso ver, quanto mais percebê-las. A minha respiração torna-se cada vez menos pausada e sinto o coração a querer sair do peito, tal é a força com que bate. As mãos tremem-me, as pernas, dormentes. Da minha boca só consegue sair um murmúrio : "ai...". Hoje estou parvo. Mais do que o costume, até porque costumo sentir-me assim, só que hoje é especial. É o dia do inatíngivel, o dia em que nos dizem que podemos voar, mas estamos acorrentados, o dia em que tudo é à borla, mas as lojas estão todas fechadas. Desatino. Puxo do maço e tiro um cigarro. Fumo-o em tempo recorde e já tenho outro nos lábios.
Chove lá fora, mas para mim é como se estivesse um sol radioso. Ou talvez esteja um sol radioso, e eu só consiga pensar em chuva. A dualidade de critérios na apreciação da meteorologia deve-se ao vaivem de considerações que está aqui, em cima dos meus ombros, dentro do crânio. Mas será aí? É que às vezes sinto que é o meu peito, mais concretamente o tal músculo a que chamam de coração, que manda. E porquê? Vejo sol, quando sinto uma pontada maior daquela coisa estúpida de que nos sempre falaram, vejo chuva quando penso que hoje é o tal dia em que não podemos. Se calhar eu estou em tal semana, ou mês, ou ano. Não sei. O que sei é que preferia não estar restringido a palavras escritas, mas antes devia poder dizer o que digo e sinto através da palavra falada e beijada. Mas chove...
Este já foi, acendo outro. O fumo eleva-se à minha volta, mas não suplanta a minha aura. Aura de euforia, auto-comiseração, sensatez, desatino. Estarei doente? Porra, devo estar de certeza, acabei o maço em pouco mais de uma hora. Desejava tanto poder gritar isto tudo do topo do campanário, da minha varanda, em cima de um banco do jardim, no meio da rua, da janela do autocarro, para o homenzinho do guichet do metro! Já dizia o Cesário, "amo insensatamente os ácidos, os gumes e os ângulos agudos". Amo aquilo que me faz mal : os cigarros (já tenho outro maço no bolso), a bebida (tenho a garrafeira cheia), a escrita (enerva-me, pela simples razão de que não estou a dizer isto).
Já não está a correr bem, se estivesse a escrever em papel, já tinha rasgado isto. Felizmente, ficará para a prosperidade o registo dos pensamentos de um gajo como eu, que anda à nora por viver na incerteza. Incerteza de merda, só porque não tenho respostas às minhas perguntas. Agora se não tenho as respostas porque não faço as perguntas ou se não me as dão, é diferente. É que ao mesmo tempo que sinto dentro de mim uma força capaz de mover montanhas, sinto também uma fragilidade, sinto-me débil e fraco. Adoro o sabor do saber pela experiência, mas odeio quando a experiência corre mal... Podia simplesmente dedicar-me a tudo aquilo que quis sempre ser, mas tinha que vir esta doença, esta obsessão, esta necessidade doida que me desatina. E qual necessidade, doença ou obsessão, se puder ser levantada a questão? A minha parte racional quer comandar, pôr em causa aquilo que eu quero e desejo, mas a essa parte eu simplesmente digo : fode-te. Como posso ser eu governado por uma metade de mim que quer afastar-me daquilo que eu mais gosto, amo, desejo, preciso? Eu, que num rasgo de intelectualidade prosaica, disse que para ser feliz só precisava de três coisas : a escrita, o álcool e a minha musa, posso agora conceber que haja uma metade (!) de mim que queira tirar-me aquilo que é mais importante, a peça central da Santíssima Trindade da minha felicidade? Por isso é que eu renego assim a minha parte racional. Pois para se perceber aquilo que o que eu estou a passar, é preciso chamar o coração em vez da razão para que este possa responder. Invariavelmente a resposta é a mesma.
Então o que é que me tolda o juízo? O que me faz viver na incerteza? É a necessidade de palavras, pele, cheiros e prazer que não é correspondida. Ou se calhar até é, mas não acontece. Dão-me asas mas estou acorrentado. Sei que se pudesse, voava pela janela e provavelmente o vento acolher-me-ia no seu seio, mas é ao mesmo tempo o vento, tão piedoso como poderoso, que me pôs estas amarras, talvez com medo do que pudesse acontecer se eu fosse livre. Livre! Dou por mim no chão, com um cigarro nos lábios e um copo na mão e encostado à cama. A cama... Apetece-me desfazê-la por me fazer lembrar dos tempos em que voava. Dá-me vontade de agarrar no colchão, pegar-lhe fogo e atirá-lo pela janela. Quero pegar num machado e rebentar as traves todas da cama! Levanto-me de um salto e sai-me mais um "ai" dos lábios. Quero procurar no fumo do cigarro a calma de que preciso, mas reparo que o cigarro caiu no copo enquanto eu tentava gritar o que sinto. Acendo o último cigarro do segundo maço de hoje e sento-me à janela.
Olho para a rua e vejo que agora é noite. Positivamente de noite, os candeeiros da rua estão acesos e está frio. Melancolicamente lembro-me dos tempos em que se houvesse frio, era lutado com calor humano. Vejo um casalinho na rua; andam devagar, encostadinhos um ao outro e de vez em quando páram para se beijarem. Tão novitos, tão inocentes, tão ingénuos... Penso agora que quando tinha a idade deles, também fazia o mesmo. A doença manifesta-se através dos mesmos sintomas, ao longo dos tempos e das circunstâncias. E gostava. E ainda gosto. Gosto desta doença, porque pode ser tratada. Mas de maneira ligeira, para nos manter doentes para sempre. Quero sentir esta fraqueza até ao resto da minha vida, quero sentir-me dormente, quero tanta coisa que nem imaginas. Quero conseguir parar com esta obsessão paralela que tenho pelos cigarros, quero parar de beber para não ter que me levantar do chão de cinco em cinco minutos, quero conseguir levantar-me, tirar o sabor do álcool e fumo da minha boca, chegar ao pé de ti e dizer : "Gosto de ti, volta para mim.".

RCA

14.10.04

Para a semana há mais

Acabou no último post o volume de escritos : "Cadernos, I". Foi publicado numa quinta-feira, excepcionalmente.

Para a semana há mais, no dia do costume, no sítio do costume.

RCA

Fim

"This is the end, my only friend, the end... This is the end, beautiful friend, the end."

RCA

Pensamentos Encorajadores II

Sei prever o futuro : tudo aquilo que planeámos para o nosso futuro, vai acontecer exactamente o oposto.


RCA

Pensamentos Desencorajadores VIII

Quando? Nunca mais!

RCA

É parecido e é a mesma coisa...

Silêncio, Escuridão, Solidão

RCA

Pensamentos Encorajadores I

Quero adormecer e acordar com o mundo reposto nos eixos.

RCA

Pensamentos Desencorajadores VIII

Repetição até à exaustão. Querem-me quebrar pelo tédio. O que eles não sabem é que eu já estou quebrado.

RCA

Pensamentos Desencorajadores VII

A maioria é estúpida e inqualificada para me perceber. A minoria composta por mim; é com quem eu desejo viver.

RCA

Receios

Quero fumar, mas receio o cliché.
Quero beber, mas receio a ebriedade.
Quero drogar-me, mas receio a adição.
Quero viver, mas receio a morte.

RCA

Return to normality

Headache,
Heartache,
Soulache,
Depression.

RCA

Pensamentos desencorajadores VI

Sou um parasita.

RCA

Pensamentos desencorajadores V

Perante a desolação rural, prefiro a solidão urbana. Mas será mesmo melhor ser solitário num grupo, do que estar isolado?


RCA

Pensamentos desencorajadores IV

Multidões sem rosto julgam-nos diáriamente por aquilo que não fizemos, ao invés de nos elogiarem por aquilo que fizemos.


RCA

Pensamentos desencorajadores III

Às vezes, arrependo-me de algumas coisas que fiz e de não ter feito coisas que podia fazer.


RCA

Pensamentos desencorajadores II

Mau tempo, catástrofes naturais, guerras, fome, crises económicas. Vivemos tempos conturbados.


RCA

Pensamentos desencorajadores I

Parca é a esperança que nos acompanha.


RCA

Dor

Tendões rasgados e ossos quebrados,
Estomâgos aos saltos, joelhos esfolados,
Encéfalos inchados fazendo mais dores de cabeça,
Aquelas capazes de nos remeter à dormência.

Dor física que percorre o corpo,
Mas a outra dor, que nos invade a alma,
Põe-nos o coração aos saltos,
Enche-nos de tristeza.

Arranca-nos a felicidade,
Tira-nos a alegria,
Aquilo que era para a eternidade.

Será então como parecia,
Que de todas a maior dor,
É aquela provocada pelo Amor?


RCA

A Correr

Corria. Por entre largas avenidas e estreitas vielas, por entre praças apinhadas e travessas desertas, corria desalmadamente.

Corria ainda ao sair da cidade. Corria nas matas, nos campos abertos, nos bosques, nos pastos verdes limitados por cercas e ribeiros.

Corria ao subir as montanhas, ao descer penhascos, ao atravessar as dunas, ao sentir os pés banhados pela água salgada do mar.

Corria, apesar de lhe apontarem o dedo. Apesar de se rirem dele, apesar de ser apelidado de ridículo. Corria.

E nós, não passamos também a vida a correr?


RCA

Esclarecimento

Na sequência de uns dos piores dias da minha vida, decidi publicar aqui um volume de escritos que tenho desde o ano passado. Os posts publicados hoje pertencem a um volume intitulado : "Cadernos, I".

O próximo volume ("Cadernos, II") vai começar a ser escrito ainda esta semana.

RCA

13.10.04

Já não estou em contradição

Acima de tudo, odeio a hipocrisia.

A pessoa mais hipócrita do mundo era a pessoa que eu gostava mais.

RCA

Por incrível que pareça...

"She is dead, and with her, my last feelings for humans"

RCA

Wiser words have never been said

"Entre o amor e o ódio há uma linha ténue."


RCA

6.10.04

Chuva - Parte III - Fim

Foi então que começaram as chegar as nuvens. Primeiro, algumas pequenas e brancas, que as crianças até tentavam adivinhar a forma de uma e de outra. As nuvens foram engrossando e mudando de côr. Até que ficaram negras como breu e os dias confundiam-se com as noites. Já não se saía de casa, ficava-se junto da lareira para tentar conservar algum calor, nos dias cada vez mais frios. E começou a chover.
Dizia-se que até era bom para as colheitas, alguma água não iria fazer mal. Os dias passavam, a água continuava a cair do céu. As pessoas, cada vez mais entediadas, ficavam agora grandes partes do dia envoltas nos seus próprios pensamentos. Apercebiam-se dos seus pecados e falhas, dos seus erros e invejas, mas tinham todos demasiada vergonha para falar com os outros sobre isso. Os dias foram passando escuros e perdeu-se a noção do tempo. A chuva, implacável, ia caíndo. Teve o condão de transformar uma vila, anteriormente cheia de vida, num fantasma de si mesma. E a água começou a subir.
Começou a entrar pela soleira das portas. As pessoas combatiam-na como pudiam. Calafetaram-se as portas, tornando-as inexpugnáveis. Ao mesmo tempo que nada entrava, também nada podia sair. Mas as pessoas preferiram jogar com esse risco e assim o fizeram. Depois, começou a cair dos tectos. A água infiltrava-se por onde podia, mas as pessoas não desistiriam tão facilmente. Reforçaram os telhados por dentro, tapando todos os buracos. Não se aperceberam foi da água que se ia acumulando mesmo por cima das suas cabeças, mas também todos pensavam que a chuva era só temporária. A chuva engrossou e já corriam rios nas vielas entre as casas, que iam desaguar à praça, onde se formara um autêntico lago. E nem aí as pessoas tiveram medo.
À chuva aliaram-se o vento cada vez mais poderoso e os trovões e relâmpagos. Os que ousavam ainda olhar pela janela, assustaram-se então, com o cenário terrível de raios de luz contra a noite escura e mesmo aqueles que se afastavam das janelas, não conseguiam escapar ao assobio temível do vento, que chiava entre as pedras das paredes e que projectava a água, que nunca mais acabava, contra as janelas. E então as pessoas tiveram medo.
E lembraram-se das palavras do homem justo. Aqueles que não as sabiam, foram ensinados. As pessoas passaram a encarar com terror a água que lentamente se acumulava às suas portas, que as espreitava pelas janelas e que corria por cima das suas cabeças. E todos perceberam que o fim tinha chegado. Muitos choravam na incompreensão de tudo aquilo, outros aceitavam o destino. Mas todos, todos só conseguiam agora pensar no quanto estavam errados. Mas mesmo com aceitação de culpa, as pessoas não teriam a sua redenção.
Pois a chuva, agora cobrindo as casas completamente, atacou. Com fúria, fez voar portas, estilhaçou janelas e desabou telhados e tectos. Pacientemente tinha cercado as pessoas e agora colhia os frutos da sua estratégia. A água entrava nas divisões das casas e apanhava as pessoas. Aquelas que tentavam nadar, mais sofriam, pois a água estava tão fria, que as gelava em vez de as afogar. O vento amainou apenas para se ouvir gritos em toda a vila. Gritos de arrependimento, gritos de injúria, gritos de dor, gritos de terror.
De nada serviu aos homens bradar contra as águas. De nada lhes serviu gritarem que tinham trabalhado toda a vida contra a Natureza, a desbravar encostas, a comandar rebanhos imensos, a trabalhar para sustentar os seus.
De nada serviu às mulheres argumentar com as águas. De nada lhes serviu suplicarem por misericórdia, por terem crianças, maridos para alimentar, casas para cuidar.
De nada serviu às crianças chorarem perante as águas. De nada serviu aos rapazes confessarem os seus desejos e pecados, de nada serviu às raparigas confidenciarem os seus amores e sonhos de namorados.
A água atacou tanto o homem que tinha roubado, como a mulher que apertava os filhos contra o peito. Atacou tanto o rapaz que nunca tinha tido coragem de dizer à rapariga da casa de frente que gostava dela, como a rapariga da casa de frente que jogava com os sentimentos dos rapazes da vila.
A água atacou tanto os culpados como os inocentes. A água, fonte de vida, purificou aquelas terras cheias de inveja e amor, ócio e trabalho, pois choveu tanto para uns, como para outros. A vila teve a expiação dos seus pecados através da morte de todos os seus habitantes. Com eles morreu a falta de confiança que tinham tido no homem justo e bom e a inveja, a inimizade e o desprezo. Morreram todos pela água, agora fonte de morte. E mesmo purificada pela morte da vila, aquela região ficaria para sempre conhecida como a região da morte ou da Perdição.

RCA

Chuva - Parte II - Meio

Foi no fim da estação quente, por sinal bastante proveitosa (em que as colheitas foram de tal forma grandes que houve uma festa rija que durou três dias e três noites), que primeiro se reparou no tempo que mudava. Os ventos agrestes assobiavam nas escarpas e arrancavam as árvores velhas e mirradas das suas raízes e enregelavam as pessoas desabrigadas nas ruas da vila. Os dias foram-se tornando mais curtos e as noites cada vez mais frias. Uma manhã, a vila acordou com a notícia de que a água do poço tinha congelado. Não era inédito, o estranho era ser em pleno Setembro. Imediatamente se minimizaram os incidentes, dizendo-se que era natural após 9 meses de calor e bom sol (pois agora os verões duravam quase um ano inteiro), que viessem umas semanas mais difíceis. O povo, querendo procurar uma explicação, acreditava e já falava nas "semanas de provação" que aí vinham, como uma coisa perfeitamente natural. Mas não era. E o único que discordava era o cego que passava os dias junto ao poço. Ninguém sabia bem quantos anos ele tinha; as crianças tentavam adivinhar, os homens diziam que devia ter uns bons 80 anos e algumas mulheres comentavam que há muito que o cego tinha ultrapassado os 100 anos de vida. Verdade seja dita, já ninguém se lembrava do nome do cego e também não lhe davam muita importância. Mas como ele era agora a única voz de discórdia, cedo o apelidaram de "velho louco" e "cego burro".
Os dias agora eram cada vez mais sombrios. As crianças já não brincavam nas ruas e poucos eram os homens que tardavam a sair dos campos após o pôr-do-sol, pois havia agora o medo de se perderem nos caminhos das encostas. Chegou-se então à solução de instalar sistemas de iluminação primitivos, com candeeiros de azeite que arderiam durante a noite na vila e nos caminhos das montanhas, para proteger os vilões das trevas. Após alguns dias, o azeite começou a escassear. Mesmo assim, insistiu-se na queima do azeite como fonte de luz, até que os ventos sopraram tão fortes que os postes onde estava a chama foram arrancados do chão, que desistiram da iluminação. Decidiu-se então suspender os trabalhos no campo; afinal, havia comida que chegasse para aguentar anos de cerco. Mas cedo os homens acusaram as mulheres de se terem esquecido de como cozinhar, pois agora a comida já não tinha o mesmo sabor nem alimentava bem. No meio das frívolas discussões, alguém lembrou que já não havia azeite para condimentar a comida.
Perante estes acasos inoportunos, decidiu-se enviar uma caravana à cidade mais próxima para comprar mantimentos. Mas uns dias depois da sua partida, os homens voltaram apeados dos seus cavalos, famintos e com um ar desgraçado. Explicaram que numa tarde, quando pararam para acampar, os cavalos enlouqueceram e destruíram as tendas, atacaram homens e fugiram com as provisões para a viagem. Desoladas, as pessoas resignaram-se em esperar que o Inverno passasse.

Chuva - Parte I - Início


A vida era simples. Os homens encarregavam-se de desbravar a montanha para o cultivo, as mulheres passavam os dias a tecer, coser, remendar, a tratar das crianças e das casas. As crianças, essas, passavam o dia a brincar na praça e nas ruelas da aldeia; os rapazes com mais de 15 anos iam trabalhar com os pais, tios e irmãos mais velhos, as raparigas ajudavam as mães nas lides domésticas. A vida decorria pacata em Vila Perdida (uma vila no fundo do vale), assim chamada por forasteiros por ser tão isolada. Apenas os anciãos do povoado se lembravam do verdadeiro nome da vila (que até era parecido com o nome com que fora re-baptizada) : Vila da Perdição.
Assim se chamava pois há muito tempo, rezam as lendas, um homem justo que ali vivera e durante muito tempo considerado o chefe da aldeia, desaparecera durante a noite, depois de fazer uma misteriosa profecia. Esse homem era admirado por muitos, mas alguns invejavam-lhe as suas capacidades de liderança e sapiência. Alvo de invejas e escárnios injustos, o homem continuava a sua vida, de cabeça erguida. Por fim, e já desesperados, os seus inimigos tentaram matá-lo. Durante uma colheita, tentaram simular um acidente com uma enxada, mas, apercebendo-se, o homem bom escapou ileso. Desapontado com o comportamento dos seus aldeões, convocou o povo para a praça ainda essa tardinha. De pé sobre os degraus do poço, exclamou : "Vós que me admiram e ao mesmo tempo me desprezam, que me pedem conselhos e depois escarram na minha mão estendida para vosso auxílio, que buscam a força dos meus braços para reconstruir o vosso telhado após as chuvas e que em seguida o destroiem para me ver erguê-lo de novo; vós, que aqui reunidos, não têm coragem para contestar tais acusações, não são dignos de minha companhia. Parto, portanto esta noite, mas aviso-os: a vida será fácil e até melhor, pois ultrapassarão as dificuldades da maneira como quiserem, não como eu vos ensinei. Mas chegará o dia da retribuição, em que expiarão os vossos pecados." Dito isto, voltou-se e partiu. Ainda ouviu os chamamentos das pessoas, perplexas, que tomavam aquele homem justo como um farol de orientação (mesmo não seguindo os seus conselhos) e que agora partia.
Uns, procurando ocupar o lugar do homem justo, imediatamente tentaram governar a aldeia contrariamente a como tinha sido feito anteriormente. Disseram que os terrenos já estavam fertéis e que agora o que era preciso era semear e cultivar para terem comida. Mas só semearam trigo em todos os campos, ao invés de cultivarem batatas numa parte e deixar a terceira parte dos terrenos crescer erva para as cabras. Disseram que assim toda a gente teria pão sempre e que se comeria mais. As pessoas acreditaram e assim o fizeram. Quando alguém perguntou então onde iriam pastar as cabras, arranjou-se a solução de as levar montanha acima para as pastagens do planalto. Apesar do planalto pouca erva ter para alimentar as cabras, insistiram. E quando numa noite cerrada, os pastores tentavam voltar à aldeia com o rebanho, perderam-se e foram encontrados mais tarde (dois dias depois) mortos no fundo de um penhasco juntamente com todas as pobres cabras. Decidiram então comprar ovelhas para refazer o rebanho. Teve que se desbastar o bosque para encontrar terrenos onde os animais pudessem pastar, e a aldeia ficou sem lenha durante meses. Contrariedade após contrariedade, lá conseguiram vencer todas as dificuldades, com uma solução mais engenhosa que a outra.
Assim foi passando o tempo e nunca mais ninguém se lembrou do que o homem tinha dito.
Era com determinação que agora se atacavam as encostas da montanha para as cultivarem e se conseguia. O povoamento, já uma vila, crescia próspero, seguindo as direcções de uns homens que passavam os dias na tasca da praça, sentados à sombra, a beber vinho. As pessoas trabalhavam, comiam e dormiam numa rotina já assimilada e não contestada, pois era simples. A vida era simples.