Toru
No meu sonho estou livre. Há música à minha volta, as pessoas usam todas um sorriso e o ar é de uma fresca doçura. Consigo cheirar perfumes exóticos, que me trazem lembranças. Lembranças de dias melhores, lembranças de vidas anteriores. Traz saudade. E vejo-a. Embora indefinidas as suas formas, consigo ler o seu pensamento. Vem para me levar para um sítio melhor, para me levar para junto delas. Acaricia-me a cara e dá-me água para beber. E, de repente, um estalo. Acordo. A azáfama que me rodeia faz-me perceber que estamos num oásis. Aqui, negoceia-se de tudo. Desde tecidos a vidas humanas, tudo é regateável. Olho impotente para as outras pessoas; não sabem, nem sonham que quero pedir por ajuda, mas não posso.
No resto da tarde, percorremos tanto caminho como durante a manhã. Caminhámos até à noitinha, quando está mais fresco. O vento sopra agora do mar e a brisa salgada é um contraste estonteante com o cheiro a excrementos de camelo. Embriagado por tal aroma de liberdade, sou levado para a tenda grande, entretanto erguida. O pouco que sobra da comida dos berbéres é-me dado. Ataco o jantar sôfregamente; não como há dias. Devem ter percebido que precisam de um prisioneiro com mais forças, para percorrer a última extensão do deserto, que nos levará ao destino da nossa viagem. A música e a conversa instalam-se no ar, e os homens do deserto montam os seus cachimbos de água. O fumo envolve toda a gente, numa espécie de nevoeiro aromático. O meu olfacto enloquece com tanta diversidade. Se não estivesse nas condições em que estou, até era capaz de gostar disto, penso. As pessoas à minha frente começam a ficar difusas. O som torna-se cada vez mais lento e as nuvens de fumo começam a ganhar contornos estranhos.
Ando por entre as ruas de uma cidade deserta. O mar, como uma jóia azulada, estende-se à minha frente, infinito. Saboreio o doce gosto de uma sombra, enquanto me sento para descansar. Estou esgotado. Sei que isto é só um sonho, mas parece tão real. Vejo-as. Levanto-me, dorido, e caminho na sua direcção. Uma das figuras que estão a contra-luz, a mais pequena, larga a mão da outra e corre para mim. Estou surdo aos seus chamamentos, consigo ver a sua boca a mexer. Ajoelho-me para a receber nos meus braços. Aperto-a contra o meu peito, afago os seus cabelos encaracolados. Beijo a sua bochecha rechonchuda de criança e digo-lhe que a amo muito, mais do que tudo o que existe no mundo. Ponho-a no chão e dou-lhe a mão. Vamos assim juntos, pai e filha, para junto da minha mulher. Largo a mão da minha filha. Sinto braços a envolverem-me o pescoço e beijos quentes na minha cara. Lábios salgados tocam agora os meus. Procuro no abraço da mulher que amo o consolo necessário para as próximas horas.
Ouço a minha filha brincar lá fora. Cá dentro, está fresco e agradável. Ela fita-me, eu devolvo-lhe o olhar. Não falamos, não precisamos. Beijamo-nos, para nos confortarmos. O seu vestido cai, ela tira-me as roupas. Naqueles minutos em que estamos juntos, o tempo pára. As suas mãos acariciam-me o peito, sinto o seu cabelo na minha cara enquanto me segreda ao ouvido as saudades que teve de mim. Sinto as suas coxas apertarem as minhas, enquanto se aproxima mais de mim. Hesita durante uns segundos, mas continua, firme e segura. O contacto com a sua pele nua é estonteante. Atrevo-me a tocar-lhe, e as minhas mãos ressentem-se da temperatura escaldante a que ela está. Contrario a razão e cedo ao impulso de pôr as minhas mãos nas suas longas pernas. Os meus dedos deslizam pelas suas coxas e sinto as suas vibrações. Agarro com força as suas nádegas, comprimo-a contra mim. Sinto prazer na sua carne, e pelos seus gemidos, sei que ela também. Fundimo-nos num só e os seus gritos ecoarão para sempre nos meus ouvidos.
O sol intenso faz-se sentir, não há como escapar-lhe. Caminhamos há horas, e desta vez tenho que acompanhar a caravana a pé. De repente, um grito. Alguém avistara o mar e, por consequência, a cidade portuária, para onde nos dirigimos. Mais umas horas de andamento, e chegamos. Resignado, avanço por entre as pessoas que ocupam as ruas que nessa noite vira no meu sonho. Levam-me para um curral, onde encontro outras pessoas como eu. Foramos todos levados até ali, para uma execução em grupo. Alguns choram, outros aceitam o destino. Eu sou um desses, pois sei que não estarei só, na partida. Sei que voltarei para junto da minha mulher e filha, sei que viverei feliz com elas. Eles aproximam-se, sei o que vai acontecer. Erguem as cimitarras, e os silvos das lâminas a rasgar o ar começam. É um dos últimos sons que ouço. Depois, o riso da minha filha enche o ar, e ouço a minha mulher chamar por mim.
RCA