> Escritos: 03.2005

26.3.05

Cativeiro

Olho à minha volta: as mesmas grades, as mesmas pedras, as mesmas correntes, tudo é igual ao início, tudo é constante. Passam os tempos, passam as pessoas, passam os motivos; continuo preso.
Continuo para aqui deixado, exilado, humilhado. A única coisa que me consola, é saber que nada fiz para não merecer estar aqui. Merecerei estar manietado? Merecerei não ser livre? Se calhar sonhei demasiado alto, demasiado longe, demasiado perfeito para os homens comuns. Se calhar desafiei alguma razão ou hierarquia superior, se calhar contestei involuntariamente uma lógica imutável e talvez por isso esteja para aqui a um canto.
O tempo passa. O sol vai e vem, as nuvens fazem-se e desfazem-se, lenta e pacientemente. Não temos alternativa senão esperar pelo fim da eternidade, eu e elas, elas e eu. Somos companheiros de espera, mas elas estão lá fora. Lá fora, ao vento, à chuva, durante o dia, durante a noite. Minhas fiéis companheiras, minhas tortuosas companheiras de cativeiro.
Choro. Por todas as coisas que não vi, pelas vezes que não penteei os teus cabelos, pelos dias mortos em que dormimos, pelas folhas caídas que contemplámos sem nos questionarmos o porquê da nossa hesitação. E por aqui continuo, envolvido em lágrimas, pensamentos passados e futuros, e espero. Espero pelo presente que não vem, que se confunde com o que foi e com o que será.
Imobilizo-me. A esperança não me abandona porque nunca me preencheu. A conformidade é um dom que possuo, a ignorância é a felicidade que desejo. Espero aqui que deixe de sonhar com a nesga de céu que vejo por entre as barras. Conformo-me à cela onde fui confinado, conformo-me com a minha conformidade, não cedendo ao desespero. Estou aqui apenas, resignado, à espera que o tempo passe para que chegue o dia que não há-de chegar.


RCA

15.3.05

Mar

Vim para junto do mar; para pensar, escrever um bocado, fumar uns cigarros. Encostei-me a uma pedra, apertei o casaco para me proteger do frio e olhei. Olhei em meu redor e deixei que os meus sentidos tomassem conta de mim.
O azul do céu, carregado de cinzento, junta-se com o azul do mar numa longínqua linha brilhante. As minhas mãos sentem a aspereza das rochas, imperturbáveis e sólidas. Sinto o cheiro da brisa fresca e suave; sinto na boca o sal e humidade do ar. Sou embalado pelo grasnar tranquilo das gaivotas em uníssono com o rebentamento das ondas.
Um choque mais forte faz-me despertar desta sonolência; vejo a maré subir e os pescadores escalar também mais umas rochas. Envergonhado, percebo que os meus problemas são minúsculos comparados com a imensidão do mundo. Levanto-me e afasto-me do mar, mas sempre com o som das ondas nos meus ouvidos, a lembrar-me a minha insignificância.


RCA

Água

Quero tornar-me água; ser levado pelo mar adentro, bater-me contra as rochas, embalar suavemente navios, agitar-me furiosamente quando me apetecer.
Quero rugir durante a noite para libertar-me da dor, quero murmurar de manhã, de mansinho, para que todos os seres venham ter comigo. Quero fazer parte do ciclo da vida; quero que as pessoas admirem a minha cor quando o sol mergulhar em mim. Quero que as gaivotas façam voos rasantes à minha superfície; quero que as pessoas mergulhem em mim.
Quero dar a voltar ao mundo sete vezes e não me cansar; quero ver os icebergues e os glaciares, quero correr debaixo das tundras e das estepes geladas; quero saborear o gosto das cidades costeiras e cosmopolitas; quero fazer a separação entre as águas mortais e os desertos ferventes; quero acariciar as ilhas, quero velar junto dos vulcões submarinos. Quero passear entre as selvas, quero deslizar suavemente pelos pântanos, quero galgar fronteiras e voltar para junto do berço dos oceanos. Quero encher o olhar de coisas novas, quero indefinir-me, quero chamar por alguém, quero libertar-me de ti.
Ah!, como eu invejo o mar.


RCA

Caminhava

Caminhava, sob o sol escaldante, sobre o alcatrão fervente. Passada após passada, conquistava terreno ao horizonte, longínquo mas redentor. Todas as suas energias concentravam-se para dar mais um passo em direcção àquilo que julgava ser o seu objectivo.
Por vezes, sentia fraquezas; esqueletos e restos adjacentes ao seu caminho faziam-no pensar em desistir e voltar para trás. Momentos de atribulação, onde não se via em seu redor uma única gota de água, fonte de esperança e salvação. E, nessas alturas, não raras eram as vezes em que pensava mesmo desistir, como se aquele caminho, aquela determinação não valesse a pena.
Mas, precisamente nessas alturas, lembrava-se de toda a sua convicção e do porquê em continuar, apesar de tudo. E era isso que lhe dava as forças necessárias para lutar contra os demónios e os esqueletos à beira da estrada.
E continuava. Sempre a caminhar, para o seu objectivo; sem nunca desistir, mesmo quando a esperança era parca ou nenhuma, pois desistir seria ceder aos esqueletos e restos de outros desistentes. Ele era diferente, e por isso mesmo caminhava. Indiferente a pressões, necessidades, vontades.
Por isso mesmo, a única coisa que ele queria, para além de chegar aonde queria, era que o deixassem caminhar.


RCA


Se ele chegou de facto ao que pretendia, cabe a cada um observar e tirar as suas próprias conclusões. Tudo o que ele queria que se lembrassem, é que ele só queria caminhar, à sua própria vontade.