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23.7.07

Sonhos

Primeiras noites e dias.

Embalado, como quem toma balanço, vou pela vereda abaixo até chegar à água. Cautelosamente, enfio os dedos dos pés nas águas escuras e frias e tenho medo, medo da escuridão que revolve debaixo nas profundezas. Retraio-me.

Sossega, dizes-me tu, enquanto me afagas o cabelo. Entreabro os olhos e vejo-te a cara. Encolho-me no teu colo e fecho novamente os olhos.

Uma sensação de beatitude preenche-me. Os escolhos vêem dar à margem enquanto o rio se desintegra. Uma ruptura no meio do leito. O mundo acaba aqui e tudo converge para o abismo. O mundo acaba e as minhas preocupações são varridas pelo vento. As pedrinhas agarram-se desesperadamente às margens para não serem sugadas pelo vórtice. As águas agitam-se com medo e tentam abraçar-me para que eu não as deixe ser levadas. Mas estou calmo. E permito que os meus membros se alonguem e fujam à escuridão, em direcção ao sol que se põe.

Acordo no dia seguinte. No trabalho, um colega diz-me: já não há romance. Mas não lhe ligo muito, estou distraído a pensar em blusões de cabedal e guitarras castanho-escuro. Um cabelo cai sobre a minha mão. Passo o resto dia a querer dormir para poder sonhar.
No parque de estacionamento, uma camisola está presa num ramo. Um mocho pia e sinto um arrepio percorrer-me as costas. Olho para trás e vejo a pequena casa branca com telhas vermelhas no topo. Pela chaminé sai fumo e um cheiro doce a maçãs verdes preenche o ar. Vejo a humidade descer sobre a terra escura e as pinhas amontoadas e dispersas como caveiras num campo de batalha brutal e antigo.
De sobressalto, acordo. Apoio os braços na mesa e o computador devolve-me o olhar no seu ecrã negro. Mexo o rato e uma folha de texto branca preenche agora as duas dimensões em frente dos meus olhos. Tiro o casaco das costas da cadeira e vou para casa.
À noite, deitado na minha cama, só consigo ver no tecto o rectângulo branco do monitor que não desliguei no escritório. Consigo ouvir a tua respiração pausada e sinto os lençóis mexer com o teu movimento. O calor sufoca-me. Toco-te no ombro despido, a tua pele está fria e dura, como se estivesse morta há dias. Fecho os olhos e viro-me para o lado.

A terra debaixo dos meus pés treme suavemente por causa dos cascos dos cavalos que galopam ao longe. O fogo vibra por todo o lado enquanto cadáveres mutilados estão espalhados. Não sinto o calor das chamas que rodeiam a planície mas sou obrigado a olhar para cima em busca de ar, o fumo enche-me a garganta e asfixia-me. Vejo, então, que das nuvens não brota água, mas jorra fogo e pedra como chuva. Uma sensação de terror percorre-me os músculos paralisados. De frente para mim, uma figura envolta em sombras negras e mantos da mesma escuridão estende a mão para mim e toca-me no ombro. Sinto os ossos insuflarem-se e quebrar enquanto um grito fica preso na garganta cerrada.

Gritaste, apontas-me com um ar acusador. Estamos sentados na cama e ligaste a luz da tua mesa de cabeceira. Percebo que estou completamente encharcado em suor e vou tomar um duche. Enquanto a água me arrefece a pele quente, o ombro dói-me como se tivesse tentado travar um carro de frente com ele.
Viajamos para longe, para algum dos sítios que outrora visitámos e gostámos. Estou sentado à coxia do avião, tu sentas-te à janela e olhas lá para fora com um olhar sonhador. Concentro-me na minha revista. Não trocamos palavras embora aspiremos o mesmo ar; chega-nos.
Vou a sair da porta de casa para passear nas ruas banhadas pelo sol tórrido. Começo a ver as pessoas sentadas nos degraus das portas, à sombra, quando alguém me puxa pelo ombro. Olho para o lado e vejo-te, sentada, no teu lugar do avião à janela.
Já estavas a sonhar? Não sei, respondo. Se estivermos a ver o que sabemos ser real, é sonhar? Não me elucidas e voltas a olhar lá para fora, para o oceano azul límpido.

No topo do prédio, um zumbido eléctrico enche o ar. De porta aberta, estou sentado no lugar do condutor e com as pernas de fora, fitando a cidade que desperta. Falas comigo com um ar aflito e numa língua estrangeira. Sacudo a cabeça e respondo-te no idioma que conheço. Apontas para o céu e dizes mais algumas palavras. Encolho os ombros e digo-te que não sei o que te dizer. Continuas de dedo insistente para cima e eu sigo-o. O céu diz-me qualquer coisa que não sei interpretar. Viras-me costas e corres para a borda. Deixas-te cair quando lá chegas. Olho para o espelho retrovisor e vejo dois olhos inexpressivos e mortos.

Saímos pela traseira do monstro mecânico que voa. O ar é um miasma de gases mortos que passa por ar. Porque viemos para cá? Tudo está morto, até o próprio ar. Os funcionários do aeroporto tem os olhos mortiços e movimentos lentos. A roupa deles está-lhes larga e bafienta. Esperamos pacientemente no terminal, junto ao tapente rolante que nunca passa as nossas bagagens.

Acordas-me novamente no avião. Estavas a falar das malas, reportas. Estava? Ainda não chegámos? Fazes que não com a cabeça e aquiesço. O oceano fôra substituido por terra, lá em baixo e começam a notar-se edifícios. Estamos a descer.