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10.11.07

Compreensão

Parte II - Aceitar

Aquiesço; é, de facto, uma cidade notável. Mas isso não explica porque é que eu sei que foi ele quem a fez e porque é que a fez e, acima de tudo, porque é que eu não consigo descobrir quem ele é. Talvez o cavalheiro se tenha apercebido da minha hesitação, pois por trás da chávena que levou à boca vejo uma sobrancelha erguida. 'Podes perguntar à vontade', informa-me ele. E não consigo conter mais as palavras.

'Porque é que eu não sei de onde é que o conheço? Porque é que estamos aqui? O que é que estamos aqui a fazer?' disparo tudo de uma vez.

'Bebe o teu chá. Está a arrefecer' faz-me notar enquanto aponta para a chávena inamovida desde que o cavalheiro me a serviu. Como que envergonhado por aquele reparo, bebo um bocado de chá. Imediatamente uma onda de calor percorreu-me o tronco e uma sensação de descompressão propagou-se pelos meus membros. Enquanto contemplava o meu reflexo trémulo na superfície ondulante do chá, o cavalheiro abre o jornal e começa a ler. Uma pequena brisa é audível e só é cortada pelo barulho das folhas de jornal que são viradas. Olho para a capa e tento ver a data; impossível. Concentro-me então nas notícias e sinto o coração saltar uns batimentos ao reparar que a fotografia na capa parece-se com a de um homem, de um homem tremendamente familiar.

Tento então espreitar para as páginas dobradas sobre os dedos do cavalheiro de fato azul escuro e vejo imagens, palavras, frases de coisas que eu já vi, ouvi, disse, fiz. E nas páginas centrais vejo uma fotografia dela. E delas. E das coisas que eu escondo bem dentro dos recantos mais profundos e negros do meu ser porque me envergonho delas. Confuso, bebo um pouco mais de chá, agora completamente gelado e sem sabor. Desvio o olhar para os prédios do outro lado da praça: consigo ver através das janelas tão limpas que nem reflectem a luz. Consigo ver as fundações de cada edifício e as estruturas parecem esqueletos gigantes de projectos que nunca foram em frente, de ideias que pareciam óptimas em teoria mas que na prática colapsaram ao primeiro contratempo.

E o cavalheiro de fato azul escuro, enquanto vira as páginas, solta umas exclamações como: 'Ah, sim!' e 'Oh, esta deve ter doído'. Mas mais perturbante foi o que disse quando pousou o jornal e disse sem hesitar: 'Sim, no fundamental, teria feito o mesmo. Voltaria a fazer o mesmo'.

Perante isto, não consigo deixar de perguntar: 'Voltar a fazer? Mas o que é que estava a ler?' Com um aceno do braço descomplica a pergunta e desarma-me, dizendo que estava somente a ler as cotações da bolsa desta semana com um sorriso matreiro na cara.

'Agora, se me recordo bem, tinhas umas perguntas para mim. Muito bem, comecemos pelo princípio.' Ajeita a cadeira para ficar mesmo de frente para mim e, com um arrepio a percorrer-me as costas, sinto que olha directamente para a parte direita da minha cara, obscurecida pela penumbra, mas como se olhasse directamente para dentro de mim. 'Já reparaste que nesta cidade não vive ninguém? E que não há lixo? Ou que nem sequer precisaste de vir de carro e de procurar um lugar para estacionar porque havia um transporte quase à porta de casa onde acordaste até este lugar, ao qual vieste ter tão naturalmente?' Pausa para tomar mais um pouco de chá. Da sua chávena ainda se levanta, lânguido, um pequeno vapor. 'Já reparaste que esta cidade é tudo quanto tu alguma vez quiseste?'

'Então quer dizer que estou a sonhar. Ou estou morto. E que quem fez esta cidade aparecer, e presumo que tenha sido o senhor, sabia tudo sobre o que eu desejaria numa cidade.' Parei porque o cavalheiro estava a sorrir. Prossegui: 'Das duas, uma. Morri e o senhor é Deus e isto é o meu Paraíso. Mas não pode ser porque se eu realmente estou morto, veria novamente aqueles que me eram queridos e que morreram antes de mim. Então há ainda outra hipótese; estou morto e isto é o meu Inferno e estou condenado a ficar aqui isolado para sempre.' Parei, ao sentir o familiar nó apertar-se na garganta. ' Mas eu fui bom. Eu tentei sempre fazer coisas boas' disse com a voz embargada, de forma infantil, com os olhos rasos de lágrimas.

'Oh sim, tu és bom. Repara que eu uso o Presente. Tu és bom. És um pouco infeliz, mas creio que isso se pode alterar. Não, não morreste. Por isso há ainda a terceira hipótese, a que não formulaste e a que julgo, porque creio que já percebi a tua linha de raciocínio, estar mais próxima da verdade. Continua.' encorajou-me ele.

'Então se não estou morto, estou a sonhar. E o senhor...' hesitei. 'Sim?' perguntou-me ele, já com os olhos a brilhar.

'Então o senhor sou eu. Mais velho. Mais... adulto. Mais... qualquer coisa. E é por isso que eu o conheço: é parecido comigo, mas o tempo modificou-lhe um pouco as feições e claramente trata melhor de si do que eu a mim próprio. Mas se eu estou a sonhar, como é que posso sonhar comigo mesmo no futuro?' E aqui estava genuinamente confuso.

'Sim, de facto, como? Sabes o que eu acho? Acho que eu sou uma imagem que tu projectas para ti próprio de um futuro de sucesso, de felicidade. É por isso que eu sei tudo sobre ti mas tu quase não sabes nada sobre mim. Sabes o produto final, não sabes como lá chegar.' confessa o cavalheiro, sempre a fitar o lado direito da minha cara, como só esse lado pudesse saber a verdade, enquanto o lado esquerdo, banhado pelo sol, rejuvenesce a cada momento que passa e a parte que a completa envelhece com o peso do conhecimento.

'Então mas porquê agora? Porquê eu estar a sonhar com isto hoje? Seja hoje quando for. Aconteceu alguma coisa para ter provocado este... sonho, esta situação.'

'Oh, acho que isso foste tu que fizeste inconscientemente. Ou subconscientemente. Querias dar um pontapé de ressalto na tua vida, mudar o rumo, subir-lhe uns furos. E convocaste-me para eu te dar umas dicas.'

'Isso quer dizer que posso fazer isto sempre que quiser?' pergunto infantilmente ao cavalheiro de fato azul escuro impecável que sou eu. Deve ter reparado na excitação que passou pela minha mente e fez brilhar os meus olhos momentaneamente.

'Não. Aconteceu desta vez porque aconteceu. Não pode ser sempre que quiseres. Da mesma forma que não é Natal ou o teu dia de anos todos os dias.' acrescenta com candura.

'Então...' e o nó na garganta começa a desapertar-se 'posso perguntar-lhe coisas? Posso saber alguma coisa do futuro?'

'Não... eu sou apenas uma imagem, um reflexo dos teus desejos. Nada sei de mim mesmo, mas sei de ti. Do teu eu presente. Do que queres, do que sabes, do que tens medo, do que pensas quando olhas para o infinito. E é disso que eu te posso e...' hesita 'quero falar.' conclui, enquanto desvia o olhar e bebe um pouco mais de chá.

'Porque é que todos os dias sinto o coração na boca? Porque é que às vezes sinto a garganta fechar-se e picadas nos olhos?' lancei as perguntas mais prementes, até porque durante quase toda a conversa foi o que se passou.

'Isso é porque não lidas com os teus sentimentos de forma correcta. Tens que arranjar um modo de escapar às tuas preocupações diárias e futuras. Se bem que os teus receios do futuro só se cumprirão se não acatares os conselhos que te posso dar. Se fizeres o que vais perceber que tens que fazer, eu concretizar-me-ei. Não sei se esta expressão existe, mas é o melhor que consigo arranjar' confessa o cavalheiro.

'Então o que é que eu posso fazer? Eu tento perceber o que é que se passa de mal. Eu sento-me e tento analisar porque é que fiz isto desta maneira e não de outra e o que aconteceria se tivesse optado por outra coisa completamente diferente.'

'Pensas demasiado. Já te disseram isto mais do que uma vez, já te repetiste a ti próprio vezes sem conta e continuará a ser verdade a menos que saibas pensar menos, mas melhor.'

'Então o que é que posso fazer?' repito a pergunta. E continuo: 'A única coisa que sei fazer é pensar sobre as coisas. Interpretá-las e catalogá-las em diferentes secções na minha cabeça, acessíveis para quando precisar delas. Nada mais.'

'E isso é uma coisa boa. Quer dizer que já sabes separar o que realmente importa das coisas acessórias.'

'Então qual é o próximo passo? Agora que já percebi. O que é que devo fazer agora?' pergunto, sempre no tom infantil que já tomei por normal.

'Agora escrevemos.'

E a inclusão da forma plural não me passou despercebida, mas achei-a lógica. Pensei que seria uma daquelas coisas que não damos muita atenção imediatamente, mas um dia quando tivermos tempo para pensar, percebemos que deviamos questioná-la ali mesmo, na altura.

E enquanto considerava todas estas coisas novas, o cavalheiro de azul escuro serve-me um pouco mais de chá que bebo maquinalmente, enquanto olho distraidamente para a praça deserta, aberta sobre os raios de sol que caiem nesta cidade que eu criei para mim mesmo; enquanto olho para o infinito.

1 Comments:

Blogger An@ said...

Curioso como conseguimos idealizar mil coisas, até a nós mesmos! Encontrarmo-nos connosco mesmos e entender que sabemos tanto ou tão pouco de nós mesmos chega a assustar um pouco ...

pensar demais... conheço(-me) gente com os mesmos problemas!*

11:52 da manhã  

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