> Escritos: 20, ou a banda sonora da vida de nós os dois

19.7.07

20, ou a banda sonora da vida de nós os dois

20. Beniamo Gigli - Nessun Dorma (Turandot, Puccini)


O sono não vem e não virá. A noite não deixará ninguém dormir e eu não me deixarei dormir até definir o que fazer com a minha vida que passa, para que quando adormecer, seja um sono doce, sem sobressaltos, confortado pelo facto de saber ter um rumo para atacar tudo quanto seja obstáculo. Que ninguém durma, especialmente tu e eu, nos nossos quartos frios. Não quero que durmas porque quero que passes o mesmo que eu, quero que sintas a saudade impiedosa roçar nos ossos e encher as cartilagens de líquido até inflamar. Quero que sintas a dor e desespero das noites em que a alvorada não vem.
Que as estrelas velem por nós todos nesta noite. Que as estrelas tremam de temor pela magnitude do meu amor, que tremam com a minha fé e esperança em que tu cedas e eu me levante e erga a cabeça. Que a noite não cesse enquanto eu não a matar para que nós dois possamos compreender. Compreender o que nos move, compreender o amor que nos consome.
Mas as minhas intenções mantêm-se fechadas em mim; um mistério, até mesmo para mim. São secretas e ser-me-ão reveladas quando for a altura certa. Guardarei os pedaços de cada noite dentro de mim como combustível para manter o fogo vivo que vai iluminar todas as outras noites de forma esplendorosa.
Anseio pelos teus lábios na minha pele. Anseio o beijo que me darás quando perceberes que sou um príncipe que se fez sozinho e que lutou contra o silêncio imposto pelo amor inconfessado. Anseio pelo beijo que te darei que te fará minha. Anseio pela luta contra as muralhas fortes e seguras e torres altas e orgulhosas e moinhos de vento que serão sempre gigantes. Anseio pela luta e já escolhi uma.
Abro o armário e pego em todas as garrafas que consigo. Levo-as para a cozinha e ponho-as dentro de um saco. Levo o saco para a sala e meto lá dentro as restantes garrafas. De saco na mão, procuro pela casa tudo o que seja o inimigo. Volto para a sala, com o saco cheio e a retinir o vidro, os líquidos inquietos nas garrafas, os comprimidos a bater contra o plástico que os guarda. Deposito tudo no chão da sala. Vou buscar um bastão ao meu quarto. De pé, em frente ao saco, olho pela janela e a noite mantém-se. Inspiro. Com um sorriso nos lábios, começo a espancar as garrafas que se partem como castelos de areia na praia. Devolvo com uma força brutal todo o desespero e paz podre que o álcool e os comprimidos me deram ao longo dos anos, devolvo com todos os músculos do meu corpo a dor provocada. Rebento o vidro todo até não ser mais que cacos que jazem derrotados no fundo de um saco do lixo, no chão da minha sala. Sinto a doce redenção fluir nas minhas artérias, expulsando o amargo da angústia, levando a cada célula do meu corpo a libertação.
Que acabe a noite. Que recuem as estrelas que guardam a noite e o teu sono. Ordeno às estrelas e à lua que se ponham e que suba o sol e traga consigo a alvorada. Que venha a alvorada e que testemunhe a minha vitória sobre a infelicidade pois eu atravessei a mais longa das noites e, batalhando sozinho, derrubei os castelos erguidos contra mim e corro para ti e para a luz; serás minha novamente. Que agora a luz se submeta a mim pois eu venci.


RCA

1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

epá que dark... e no entanto está muito bem escrito. são bons estes exorcismos através das palavras... expulsam as trevas. um beijo da liliete.

ps- o meu gato continua de cucas. não sei que fazer...

12:17 da tarde  

Enviar um comentário

<< Home