> Escritos: 12.2007

19.12.07

Compreensão

Parte III - Retomar

Uma brisa, leve, faz-me regressar à esplanada e à mesa. A chávena, vazia, começa a perder o brilho do reflexo do sol, que se esconde para lá dos prédios vazios. O cavalheiro de azul fita-me inexpressivamente. Olho para as palmas da minha mão: não, não as conheço. Se não conheço as ferramentas que me darão tranquilidade, como poderei utilizá-las de forma adequada?

'Causa e efeito' ouço a minha projecção do meu eu futuro dizer. 'O quê?' replico. 'É uma questão de causa e efeito. Tu acordas de manhã e vais para as aulas. Passa-se alguma coisa, com alguém, um colega, um professor, uma rapariga, qualquer coisa. Essa é a causa. O que depois se passa dentro de ti, o que sentes e como reages, o que dizes, fazes ou deixas de dizer e fazer é o efeito. Consequência natural dos acontecimentos anteriores e de um processo neurológico que ocorre dentro de ti. Processo esse que é influenciado por tudo o que tu és: as tuas vivências, experiências, desejos, o teu ser primitivo e profundo. Esse és como nasces. Mas também resultas dos genes que tens. Causa e efeito. És assim porque o teu pai e a tua mãe se conheceram e ocorreu uma combinação genética com probabilidade de acontecer perto de zero. Causa; isso vai influenciar as escolhas inconscientes que farás no início da tua vida, antes de começares a colectar memórias e conseguires juntar conceitos. O efeito serão as tuas decisões.' Parou para gozar os últimos raios de sol dourado.

'Causa e efeito. Ou, se preferires, causa e efeito, efeito, efeito, efeito, efeito, efeito... Sendo a primeira causa a primeira acção de todas do ser que foi responsável pela tua génese.' Calou-se e fechou os olhos. Manteve-os assim durante uns minutos; a primeira vez que o vi fazer isso.

'Como é que sabe isso tudo?' perguntei, curioso. 'Oh! Sei-o porque tu o sabes. Eu só sou tão fluente e capaz de me explicar bem quanto tu o és. Eu derivo de ti: eu sou o último efeito. E agora, ao explicar-te isto, estou a causar um novo ciclo. Estou a permitir-te transformares-te em mim. Um novo ciclo, mas agora virtuoso, ao invés do ciclo vicioso em que vivias e que te oprimia o peito.' O cavalheiro do fato azul desembaraçava-se com uma facilidade notável das minhas questões.

'Hmm, mas um ciclo não tem início. Teoricamente... é essa a sua definição.' intervenho. 'Teoricamente. Mas na prática... estamos a começar um.' e aqui sorriu. Sorriu de tal maneira que a sua boca se alargou e a sua cara exprimiu mais nesse momento do que até ali. Compreendi, finalmente, o que significava verdadeiramente este sonho para ele. Era a sua existência que estava em causa. Era a minha felicidade que se jogava. Aceitei o desafio.

'Então... assim que eu regressar e começar a... escrever... a libertar-me das coisas...' começo mas sou interrompido: 'Ah mas escrever não é, necessariamente, a única forma. Há mais. Falares com as pessoas, ouvires as pessoas... tudo conta.' salvaguarda o meu eu futuro, que agora com confiança acreditava ser possível que me transformasse nele.

'Sim, claro. Mas se eu fizer isso, e fizer bem... Quanto tempo demorará?' pergunto, mais uma vez infantilmente. Com um tom não de paternalismo mas de genuíno afecto, o cavalheiro responde-me: 'Não é imediato. Nem podes esperar que seja; aliás, vai demorar algum tempo. O que tens de perceber é que não há receitas mágicas. Tens que saber esperar. Tens que saber agira em conformidade com aquilo que queres e, sobretudo, com aquilo a que te propões. Se fosse imediato, qual seria a piada do jogo? A vida só tem piada se nos depararmos com algumas montanhas e alguns penhascos. Se fosse sempre uma planície saberias logo o que esperar. E isso tiraria toda a graça do jogo.'

'Então a vida é um jogo... Engraçado, para quem não sabe nada sobre si próprio, o senhor sabe muito sobre a vida.' digo eu, um pouco na defensiva. Com um sorriso ternurento, o cavalheiro de azul escuro responde: 'Eu sei o que tu sabes. Eu sou apenas uma projecção tua. Tu já sabias tudo isto, estavas só à espera de o verbalizar. Essa verbalização aconteceu desta maneira, num sonho. Digamos que eu sou apenas... um catalisador.' Posto isto, levantou-se e levou o jornal consigo. À medida que se afastava, em direcção oposta à do sol, ocorreu-me que não sabia para onde ir.

'Espere!' grito, levantando-me e iniciando uma corrida para ele. 'Como é que volto para trás?' O cavalheiro voltou-se e, sempre sorrindo, diz-me apenas: 'Eu só criei esta cidade. O sonho é teu, tu é que mandas. Certamente saberás e poderás fazer o que quiseres.' Virou-me pela última vez costas e prosseguiu a marcha, sem hesitar. Voltei para a esplanada e sentei-me na mesma cadeira onde estivera as últimas horas. Ou minutos. Ou segundos, não sei quantificar. Se, de facto, estou a sonhar, até pode ter sido mesmo pouco tempo. Deixo-me ficar por ali, esperando um sinal. O sol põe-se completamente e sou envolvido pelas sombras. Os meus olhos habituam-se rapidamente à escuridão instalada. As lâmpadas dos candeeiros da praça não se iluminam e do café e dos outros prédios não chega luz. Fecho os olhos e inspiro fundo. Reparo, com alguma surpresa, que o ar é salgado, como se fosse maresia, como se estivesse junto ao mar.

Abro os olhos. Estou deitado, de volta à minha cama. Levanto-me e sem hesitar lanço-me para a secretária onde pego numa folha solta e numa caneta e escrevo. Escrevo até os meus dedos estarem dormentes e faltarem-me as palavras. E enquanto o peso do meu peito se levantava a cada palavra escrita, enquanto a garganta se libertava do nó opressor a cada sentimento nascido de uma situação vivida e incompreendida que era posto no papel, enquanto as lágrimas recuavam a cada folha que retirava do caderno para continuar a escrever, sabia que este era o caminho certo para ser, um dia, o cavalheiro vestido impecavelmente de fato azul escuro e poder sorrir de forma genuinamente afectuosa.


RCA