> Escritos: 03.2007

30.3.07

Vento

Queria saber se estavas lá fora, à espera de respostas e que o vento te embalasse e te levasse no seu gentil abraço para longe de mim.

20, ou a banda sonora da vida de nós os dois

4. Three Dog Night - One Is The Loneliest Number

Calcorreamos as ruas desertas, iluminadas por candeeiros espaçados que mostram também a humidade que pousa gentilmente nas pedras da calçada. Encosto os dedos da mão esquerda a um pequeno muro que corre paralelamente à rua; sinto a textura rugosa das pedras que o compõem, sei que é real. A minha mão direita aperta a tua; sei que és real e que estás comigo.
Andamos mais um bocado até chegarmos ao miradouro que se debruça sobre a cidade adormecida, limpa de carros e pessoas nas ruas. Uma calma perfeita, não trocávamos uma palavra havia minutos, é interrompida pela passagem de uma matilha de cães vadios por nós, um deles não tinha uma pata. Isto lembra-me algo do passado descomplicado que já fôra, porque esboço um sorriso triste que não te passa despercebido. Pões a tua mão na minha cara e acaricias-me suavemente. Desejo perguntar-te porquê toda esta atenção que me dás, mas ao mesmo tempo não desejo que páres. Não consigo evitar que me saia da boca para fora que fui feito para estar sozinho, mas tu não ligas e explicas-me tudo.
Que estar sozinho não pode ser considerado “estar” porque viola a conjugação do verbo “ser”, que ninguém foi feito para estar sozinho e que ninguém foi feito para estar sozinho e que ninguém deve estar sozinho. E eu bebo, maravilhado, as tuas palavras, fascinado com os teus argumentos, afogado na beleza dos teus longos cabelos pretos, cobertos de pequenas pérolas de humidade.
Levantamo-nos para ver nascer o sol, que esbate os seus raios nos prédios e nas suas varandas de ferro forjado. A tua mão procura, nova e timidamente, a minha. Ainda hoje não sei qual de nós o disse, mas nessa altura percebemos que duas pessoas como nós estão destinadas a encontrar-se. Mas sempre, quase sempre, acrescento eu tristemente, não estão destinadas a ficar juntas.
Dás-me um beijo na cara e vais-te embora, deixando-me sozinho naquele miradouro frio, húmido e sombrio, que está sobre a cidade quente, viva e solarenga.

22.3.07

20, ou a banda sonora da vida de nós os dois

3. The Who - Baba O'Riley

Sinto-me vibrante, vivo, cheio de energia. Mastigo as esquírolas de gelo que sobejam no fundo de mais um copo de whisky vazio. Ris-te de algo que eu disse, mas que já não me lembro. Os últimos dez minutos já são passado e os últimos dez segundos estão a ficar rapidamente para trás.
Singelo, o teu olhar, que se anima perante as girândolas de luz provenientes do balcão, debaixo da prateleira onde as garrafas coloridas nos aguardam. As cores nada mais do que mascaram a promessa de álcool que as garrafas de formas exóticas encerram. As cores nada mais são do que miríades de reflexões provocadas pela luz que flecte os conservantes e colorantes contidos nas bebidas. Devo ter dito isto em voz alta, porque me fitas com um olhar de inquirição. Profuso, chamas-me. Não, não, estou é completamente bêbado.
Seguras-me na mão, e massajas-me os dedos calosos. São de escrever, informo-te. Sim, escrevo tudo o que se passa; de facto, exprimo-me melhor pela escrita que por palavras. Sorris, meneando a cabeça. Estou a ser suficientemente claro, dizes tu. Dou mais um gole do que quer que esteja no copo que agarrei agora mesmo e franzo uma sobrancelha; talvez porque não tenha percebido o que disseste ou muito provavelmente porque aquilo não era decididamente whisky. Vodka? Gin? Já perdi toda a sensibilidade, a minha língua serve apenas para falar, falar, falar.
Enquanto olho para o copo que seguro nas duas mãos, abandonas o banco onde estavas. Dou por mim sozinho e a procurar-te. Não quero que esta sensação se vá embora; não quero desperdiçá-la sozinho. Começo a pensar que não passaste de uma ilusão.
Regressas, com um copo em cada mão. Um para mim, outro para ti. Sorrio perante a tua generosidade, perante a tua ingenuidade. Depois disto não há retorno; ofereces-me uma bebida, terás que perceber que me deste espaço a mais. Explico-te isto de forma séria e tu escutas atentamente. Percebo que percebes o que disse, porque bebes agora a tua bebida e incitas-me com o olhar para te acompanhar. Decido que os actos presentes não afectam os passados e que servem de precedência para o que se passará a seguir a este copo. E por isso bebo. E vou buscar, o mais rapidamente que consigo, mais um copo para cada um de nós.
Agarras-me novamente a mão e começas a falar. Sei que o que dizes faz todo o sentido, mas entra por um ouvido e sai pelo outro. Não é por já ter bebido o suficiente para afogar um cão, é porque sinto cada vez mais uma genuína atracção por ti, um genuíno afecto. Deixo-me calado, não te quero interromper. Mas um sorriso insinua-se nos meus lábios e mantém-se mesmo quando levo o copo à boca. As luzes baixam de intensidade, a música baixa de volume. A noite prolonga-se lá fora, mas cá dentro somos nós só que vivemos. Apercebo-me disso, tu também. Escapa-se-me o teu nome: Leonor.
Olhas-me expectante. Bebo o último gole da noite, pego no meu casaco e na tua mão.

20.3.07

O amor moderno

É verdade que está sol, mas porquê sair de casa se podemos ficar aqui aconchegados? Para quê estarmos com outras pessoas quando podemos partilhar-nos um ao outro exclusivamente? É verdade que não reparei nos teus olhos esperançados, mas eu não sei. Não sei tanta coisa, sou novo nisto de amar. Porque ages como se tivesses tanta experiência?
As coisas são desta maneira mas podemos tentar mudá-las. Quero ser o que tu quiseres que eu seja, o problema é que que tu queres que eu seja eu mesmo mas eu não sei quem sou. Sempre que me perco a pensar nisso, ficas sozinha no mundo real e eu deambulo durante horas e dias, até semanas, apenas para voltar de mãos vazias quando regresso.
Disseste que querias tirar-me isso de cima, dizer-me quem eu sou, mas eu não quis. E tu não insiste. Mas porquê? Tens que ser mais incisiva, tens que me chamar à razão. Só assim poderei alguma vez ouvir-te e só assim poderás alguma vez mudar-me.
Porque não atendes? Porque não respondes às minhas chamadas? Sei que hoje estava distraído, sei que hoje não te dei tanta atenção, mas agora quero dedicar-me só a ti.
Torna-se mais difícil quando não te consigo explicar porque é que olhava para o infinito quando me pegavas na mão e contavas os teus sonhos e as tuas ambições. Torna-se difícil porque te magoei e não consigo que me deixes resolver.
E agora estás despojada, na tua cama, a chorar porque o teu homem não sabe pôr o braço à volta dos teus ombros quando a angústia te assalta e a dúvida consome-te por dentro, porque pensas que o afastaste com a tua insistência a perguntar porque é que eu sou incapaz de me abrir contigo, porquê tanto medo, porquê assustado com a partilha.
E eu estou de mãos crispadas e com um nó na garganta que não desata porque as palavras não saem e cada lágrima tua aperta-me mais a traqueia.
Já não se dorme, já não se come. Não se sonha e não se vive. Estamos condenados a perecer juntos porque não soltamos o berro que nos inflama e não deixamos soltar as lágrimas e os soluços que nos afogam.
Os cabelos morenos que te cobrem a cara caiem deixando a descoberto os teus olhos molhados e assustados. Os meus olhos raiados de insanidade espreitam por detrás da franja rebelde que não me obedece e que se junta a todas as coisas que não consigo controlar.
E gradualmente desisto de passar por tua casa para te ver silenciosamente enquanto me desprezas e te reinventas a partir das partes da tua vida que eu quebrei. E eu tento também edificar-me com base no bom que tivemos mas tu levaste tudo, deixando-me as migalhas daquilo que posso conseguir, ainda que marginalmente, noutro lado.
Absorveste tanto que ficaste maior em largura. Vês mais coisas, conheces mais coisas, sabes mais coisas. Tens uma base muito maior, nunca cairás.
Eu cresci; acumulei para cima aquilo que alcancei. Fui atirando para debaixo dos pés ou para cima dos ombros tudo quanto pude enquanto pude pois seria a única maneira de conseguir sair do fundo do poço em direcção à luz. E enquanto os meus alicerces podem ser mais frágeis, posso falar durante o dia com os pássaros e conhecer as suas viagens e à noite permito-me sonhar com o mundo enquanto estou lado a lado com as estrelas bruxeleantes e tímidas e a lua que me envolve na sua doce luz de primavera.
Seguiste em frente e persegues os teus objectivos, que traçaste quando ainda éramos sementes no mesmo vaso; eu segui para cima e sonho ainda quais serão os meus projectos e como deixar de sonhar e passar a fazer.
Tornaste-te um ser humano capaz de ser frio e cruel mas foi porque eu te tirei a gentileza que ostentavas sempre como bandeira de guerra. Tornei-me num ser humano capaz de apreciar a pequena contrariedade da nuvem que passa à frente do sol porque me tiraste a raiva que eu usava como estaca de sete metros para afastar toda a gente.
Crescemos juntos, física e psicologicamente e afastámos-nos. Fomos testemunhas do amor e vítimas do que ele pode trazer. Mas não te guardo rancor e espero que sejas capaz de te lembrar com um sorriso nos lábios das tardes em que víamos o sol por entre as folhas verdes, encostados ao tronco seguro e forte daquela nossa árvore.


RCA

15.3.07

20, ou a banda sonora da vida de nós os dois

2. David Bowie - Rebel Rebel


Calças de ganga, camisola de riscas, casaco por cima. Calço os ténis e ponho-me a andar. Enquanto desço no elevador, ajeito com as mãos o cabelo e coço automaticamente a barba rala que não tive ainda paciência para fazer. Entro no carro e enquanto espero que o motor aqueça, ligo o rádio. Música, música e mais música acompanha-me no trajecto que liga a minha casa ao sítio onde combinámos nos encontrar. Sinto-me bem, sinto-me capaz de enfrentar o mundo e rir-me de todas as situações que me fazem reflectir demasiado; estar distraído é bom, pois não sou obrigado a pensar e a relembrar-me de tudo quanto faz doer. Chego à rua do bar. Desligo o motor mas deixo-me ficar a ouvir a música até ao fim.
Percorro os metros que me separam desde o carro até à porta entreaberta do bar com passos que soam na rua vazia e que lutam pela maior audibilidade com a conversa banal e as gargalhadas suaves que saem do interior. Entro, confiante no desfecho desta noite.
Cumprimento-os um a um. Afinal, posso ser um solitário e sofrer sozinho, mas tenho em quem confiar numa noite em que a ordem é para beber o mais possível. Já se adiantaram a mim, como comprovam os muitos copos vazios em cima da mesa. Oiço alguém explicar a outro alguém a razão pela qual bebemos: não bebemos por causa do cliché, bebemos porque é o nosso estilo de vida, somos rebeldes que se rebelaram dos que apregoam que a vida é má e por isso bebem. Não; bebemos porque gostamos, bebemos porque queremos. Somos jovens (uns mais que outros), temos possibilidades e por isso fazemos o que queremos. Rio-me silenciosamente e por trás do meu copo destes argumentos, já passara o tempo em que os explanava a quem me quisesse ouvir.
Os copos não param de chegar e sair da mesa mas desta feita vazios. Já bebi o suficiente para atingir o grau em que nos sentimos soltos, animados e de língua prolífica. Arranco conversa com os meus companheiros, falamos de futilidades, como política, desporto, amor, a própria existência. Passamos então para o tópico que me interessa mais, ver quem consegue hoje beber o suficiente para não conseguir pensar em mais nada durante a próxima semana. Concorro voluntariamente e abnegadamente para este prémio e continuo a ingerir bebidas alcoólicas, mas com uma velocidade que aumenta a cada copo que me passam para a mão.
Ao dar por mim, estava a olhar para o fundo de um copo vazio, com um resto de líquido alaranjado; já estou no whisky e cheguei apenas há uma hora e meia, isto hoje promete. Recosto-me no sofá em que me sento. Passo as mãos frias do contacto com os copos pela cara quente. Tiro o cabelo da testa. Agora sim, consigo sentir o martelo na cabeça. Decido esperar mais um bocado até à próxima rodada. Deixo-me ficar por ali, a tentar apreender o maior número de informações que me rodeiam e que flutuam à minha volta, tentando interagir o mínimo possível, pois a própria observação afecta o acto observado.
Dou por mim, nestas deambulações a olhar de frente para ti, que me devolves o olhar. Paraste de falar com a tua amiga, talvez porque tinhas um homem totalmente amassado pelo álcool que flutuava alegremente no seu estômago em vez de no seu copo, que te fitava insistentemente e nem eu sei te explicar porquê. Mas sei que por não teres dito nada, me levanto e vou ter contigo. Elogio-te o cabelo, elogio-te as roupas, elogio-te sem saber porquê e nem te conhecendo. Elogio-te porque o olhar que me devolveste, esse olhar… reconheci-me nele; és como eu, uma rebelde sem causa senão a própria privação de pensamentos e necessidade de viver a vida pela qual ela é, sem rodeios.
Ficas, muda e queda, a olhar para mim como se eu fosse um bicho. Mas não me desmoralizas, porque eu hoje estou a usar calças de ganga e camisola às riscas que me fazem ficar mais elegante, seja lá o que isso for. Não me desmoralizo porque estou tão à vontade com a minha situação de rebelde que peço mais uma bebida e não saio de roda de ti até te fazer esboçar um sorriso e conhecer o teu nome; Leonor. Eu sou o Rodrigo e esta é a noite em que nos conhecemos.

8.3.07

20, ou a banda sonora da vida de nós os dois

1. Massive Attack - Teardrop

Exploro o espaço em que estou. Uma clareira verdejante que os declinantes raios solares iluminam, num fim de tarde sonolento. O silêncio é quase absoluto, quebrado apenas pela minha respiração pausada.
Avanço uns passos e embrenho-me no meio das árvores. As folhas e os ramos arranham-me a pele nua do peito e dos braços. De olhos fechados, decido o caminho a seguir; por ali, como sempre foi de todas as vezes que por aqui passei. Levanto o mesmo ramo caído de todas as outras vezes e entro no buraco que surge no chão. Continuo a descer confiante pelo túnel, perfeitamente adaptado às minhas dimensões. Desço até não haver mais luz solar e deparo-me com uma porta entreaberta; empurro-a suavemente e entro.
Um salão subterrâneo estende-se à minha frente. O chão, xadrez marmóreo de preto e branco, suporta colunas espalhadas pelo salão, que por sua vez suportam o tecto escuro. Caminho através da escuridão, guiado por uma luz lá ao fundo.
Chego, por fim, à lâmpada acesa, que ilumina junto a si uma cama. Deito-me e a lâmpada apaga-se, num acto natural. Sinto então a escuridão envolver-me e adormeço. Fico ali a dormir dentro do meu sono, a sonhar dentro do meu sonho, finalmente em segurança.
Um ruído longínquo insinua-se através das trevas, despertando-me. Acordo, então, e estou no meu quarto. Suspiro e anseio por ter, na vida real, um lugar onde me possa refugiar, como tenho nos meus sonhos.
Suspiro novamente e levanto-me.

5.3.07

Publicação

Na próxima quinta feira será publicado o primeiro capítulo de uma pequena estória que escrevi para uma pessoa.

A estória chama-se "20, ou a banda sonora da vida de nós os dois" e está dividida em 20 capítulos.

Serão publicados semanalmente às quintas feiras, como era no princípio (para aqueles que se lembram).

Até lá.

Sensações

Será que sempre que sinto um peso no peito, tenho que imediatamente assumir que a âncora que me puxa para baixo voltou?

Porque é que não consigo flutuar? Porque não é que se pode eliminar a água da equação?

Só não me sinto a afundar mais porque estou ciente que já bati no fundo e agora subo ligeiramente com a impulsão, mas ficarei em equilíbrio precário a poucos metros do abismo.

Distracções

Massajo a perna dorida. Despenteio mais um pouco o cabelo. Coço as cicatrizes no braço. Tudo serve para matar segundos, desperdiçar minutos. Tudo serve de pretexto para fugir ao tema da conversa, para me fingir ocupado enquanto ninguém me presta atenção.
Desenho teorias, desfaço castelos, projecto epopeias, diviso políticas. Tudo enquanto os momentos silenciosos se instalam, tudo enquanto te calas e olhas para o lado.
Componho andamentos, gizo estratégias, assimilo raciocínios. Tento distrair-me ao máximo, tento afastar da minha mente a conclusão de que cheguei tarde demais. Não há outra resposta; é um problema linear. Ou é sim, ou é não.
Relembro acontecimentos, estalo os nós dos dedos, abano as mãos. Num grupo de pessoas e ninguém me dirige a palavra; há que fazer passar o tempo.
Focalizo a dor na perna, concentro-me nela, faz-me companhia enquanto o tempo passa. Ordeno a todos os nervos no meu corpo a transmitir a mínima dor que sintam imediatamente; tenho por objectivo desculpar-me para poder sair daqui.
Abrando a respiração. Cada inspiração, cada batimento cardíaco, cada expiração serve para me distrair. Cada evento fisiológico serve para negar por instantes a desilusão da verdade.
Engulo em seco, sinto a electricidade estática percorrer-me os braços, enterro os dedos no meu cabelo. Sair daqui para quê? Para fazer o mesmo em casa?
Esmurro a perna sem ninguém ver, há que aumentar a dor. Castigo as paredes com os meus punhos, distribuo energia pelas paredes, inflijo mais dor. Já quase não penso.
Imagino como será passar as mãos pelo teu cabelo, como será poder abraçar-te sem receios, como será poder levar-te pela mão. Perco-me em considerações, distraio-me da dor.
Desligo-me de ti momentaneamente. Levo as mãos à cara, como no gesto que alguém me faria se eu importasse a alguém. Já não dói tanto, mas também não distrai.
Remeto a introspecções profundas numa tentativa de procurar no interior aquilo que falta no exterior. Remexo na essência do meu ser, nas fundações da minha pessoa. Toco na raiz primitiva do que sou.
Recorro a tudo para me distrair, tento tudo o que consigo para te afastar do pensamento. Nada resulta. Nada impede que a verdade se espalhe em mim como azeite.
Nada me distrai, e eu sei então que nunca vou ter alguém.


RCA

Estendo

Estendo a minha rede, como quem pesca. Utilizo os meus artifícios, as minhas técnicas, os meus truques. Nada surte efeito. Nada se altera. O sol sobe no horizonte e o vento breve bate as ervas junto à água.
Estendo a minha teia, como quem caça. Nada ainda; nada se passa. Sozinho, alhures, procuro atrair algo para junto de mim, mas demonstra-se impossível. O sol está a pique, bate directamente na minha cabeça morena, queimando a minha pele. O vento pára, as águas murmurejam e as cigarras cantam nas árvores.
Estendo a minha mão, como quem alcança. Nenhum ser agarra os meus dedos; apalpo o ar. Estou só, só ficarei. Uma nuvem desloca-se para longe, deslizando enquanto se afasta do sol e o calor volta.
Estendo os meus olhos, como quem observa. Ninguém à vista, ninguém que me leve deste isolamento. O sol começa a descer enquanto incendeia a atmosfera, diluindo as cores ao longe num vermelho ocre.
Estendo a minha imaginação, como quem cria. Multidões rodeiam-me, vida surge à minha volta por tudo quanto é lugar. De forma efémera; esfumam-se no ar assim que me distraio. As primeiras estrelas surgem no firmamento, libertas do jugo do sol.
Estendo a minha memória, como quem revive. Não me lembro da última vez que não estive sozinho. A escuridão assenta-me sobre os ombros. Imóvel, sinto o peso opressor das sombras e da angústia que carregam.
Estendo a minha vontade, como quem desiste. Não voltarei a sonhar com companhia. Estou isolado, isolado ficarei. As horas passam, a vida acaba-se e eu fico ali, enquanto tento atrair algo para junto de mim mas sempre falhando, sempre ficando só.


RCA