> Escritos: 20, ou a banda sonora da vida de nós os dois

22.3.07

20, ou a banda sonora da vida de nós os dois

3. The Who - Baba O'Riley

Sinto-me vibrante, vivo, cheio de energia. Mastigo as esquírolas de gelo que sobejam no fundo de mais um copo de whisky vazio. Ris-te de algo que eu disse, mas que já não me lembro. Os últimos dez minutos já são passado e os últimos dez segundos estão a ficar rapidamente para trás.
Singelo, o teu olhar, que se anima perante as girândolas de luz provenientes do balcão, debaixo da prateleira onde as garrafas coloridas nos aguardam. As cores nada mais do que mascaram a promessa de álcool que as garrafas de formas exóticas encerram. As cores nada mais são do que miríades de reflexões provocadas pela luz que flecte os conservantes e colorantes contidos nas bebidas. Devo ter dito isto em voz alta, porque me fitas com um olhar de inquirição. Profuso, chamas-me. Não, não, estou é completamente bêbado.
Seguras-me na mão, e massajas-me os dedos calosos. São de escrever, informo-te. Sim, escrevo tudo o que se passa; de facto, exprimo-me melhor pela escrita que por palavras. Sorris, meneando a cabeça. Estou a ser suficientemente claro, dizes tu. Dou mais um gole do que quer que esteja no copo que agarrei agora mesmo e franzo uma sobrancelha; talvez porque não tenha percebido o que disseste ou muito provavelmente porque aquilo não era decididamente whisky. Vodka? Gin? Já perdi toda a sensibilidade, a minha língua serve apenas para falar, falar, falar.
Enquanto olho para o copo que seguro nas duas mãos, abandonas o banco onde estavas. Dou por mim sozinho e a procurar-te. Não quero que esta sensação se vá embora; não quero desperdiçá-la sozinho. Começo a pensar que não passaste de uma ilusão.
Regressas, com um copo em cada mão. Um para mim, outro para ti. Sorrio perante a tua generosidade, perante a tua ingenuidade. Depois disto não há retorno; ofereces-me uma bebida, terás que perceber que me deste espaço a mais. Explico-te isto de forma séria e tu escutas atentamente. Percebo que percebes o que disse, porque bebes agora a tua bebida e incitas-me com o olhar para te acompanhar. Decido que os actos presentes não afectam os passados e que servem de precedência para o que se passará a seguir a este copo. E por isso bebo. E vou buscar, o mais rapidamente que consigo, mais um copo para cada um de nós.
Agarras-me novamente a mão e começas a falar. Sei que o que dizes faz todo o sentido, mas entra por um ouvido e sai pelo outro. Não é por já ter bebido o suficiente para afogar um cão, é porque sinto cada vez mais uma genuína atracção por ti, um genuíno afecto. Deixo-me calado, não te quero interromper. Mas um sorriso insinua-se nos meus lábios e mantém-se mesmo quando levo o copo à boca. As luzes baixam de intensidade, a música baixa de volume. A noite prolonga-se lá fora, mas cá dentro somos nós só que vivemos. Apercebo-me disso, tu também. Escapa-se-me o teu nome: Leonor.
Olhas-me expectante. Bebo o último gole da noite, pego no meu casaco e na tua mão.