> Escritos: 20, ou a banda sonora da vida de nós os dois

15.3.07

20, ou a banda sonora da vida de nós os dois

2. David Bowie - Rebel Rebel


Calças de ganga, camisola de riscas, casaco por cima. Calço os ténis e ponho-me a andar. Enquanto desço no elevador, ajeito com as mãos o cabelo e coço automaticamente a barba rala que não tive ainda paciência para fazer. Entro no carro e enquanto espero que o motor aqueça, ligo o rádio. Música, música e mais música acompanha-me no trajecto que liga a minha casa ao sítio onde combinámos nos encontrar. Sinto-me bem, sinto-me capaz de enfrentar o mundo e rir-me de todas as situações que me fazem reflectir demasiado; estar distraído é bom, pois não sou obrigado a pensar e a relembrar-me de tudo quanto faz doer. Chego à rua do bar. Desligo o motor mas deixo-me ficar a ouvir a música até ao fim.
Percorro os metros que me separam desde o carro até à porta entreaberta do bar com passos que soam na rua vazia e que lutam pela maior audibilidade com a conversa banal e as gargalhadas suaves que saem do interior. Entro, confiante no desfecho desta noite.
Cumprimento-os um a um. Afinal, posso ser um solitário e sofrer sozinho, mas tenho em quem confiar numa noite em que a ordem é para beber o mais possível. Já se adiantaram a mim, como comprovam os muitos copos vazios em cima da mesa. Oiço alguém explicar a outro alguém a razão pela qual bebemos: não bebemos por causa do cliché, bebemos porque é o nosso estilo de vida, somos rebeldes que se rebelaram dos que apregoam que a vida é má e por isso bebem. Não; bebemos porque gostamos, bebemos porque queremos. Somos jovens (uns mais que outros), temos possibilidades e por isso fazemos o que queremos. Rio-me silenciosamente e por trás do meu copo destes argumentos, já passara o tempo em que os explanava a quem me quisesse ouvir.
Os copos não param de chegar e sair da mesa mas desta feita vazios. Já bebi o suficiente para atingir o grau em que nos sentimos soltos, animados e de língua prolífica. Arranco conversa com os meus companheiros, falamos de futilidades, como política, desporto, amor, a própria existência. Passamos então para o tópico que me interessa mais, ver quem consegue hoje beber o suficiente para não conseguir pensar em mais nada durante a próxima semana. Concorro voluntariamente e abnegadamente para este prémio e continuo a ingerir bebidas alcoólicas, mas com uma velocidade que aumenta a cada copo que me passam para a mão.
Ao dar por mim, estava a olhar para o fundo de um copo vazio, com um resto de líquido alaranjado; já estou no whisky e cheguei apenas há uma hora e meia, isto hoje promete. Recosto-me no sofá em que me sento. Passo as mãos frias do contacto com os copos pela cara quente. Tiro o cabelo da testa. Agora sim, consigo sentir o martelo na cabeça. Decido esperar mais um bocado até à próxima rodada. Deixo-me ficar por ali, a tentar apreender o maior número de informações que me rodeiam e que flutuam à minha volta, tentando interagir o mínimo possível, pois a própria observação afecta o acto observado.
Dou por mim, nestas deambulações a olhar de frente para ti, que me devolves o olhar. Paraste de falar com a tua amiga, talvez porque tinhas um homem totalmente amassado pelo álcool que flutuava alegremente no seu estômago em vez de no seu copo, que te fitava insistentemente e nem eu sei te explicar porquê. Mas sei que por não teres dito nada, me levanto e vou ter contigo. Elogio-te o cabelo, elogio-te as roupas, elogio-te sem saber porquê e nem te conhecendo. Elogio-te porque o olhar que me devolveste, esse olhar… reconheci-me nele; és como eu, uma rebelde sem causa senão a própria privação de pensamentos e necessidade de viver a vida pela qual ela é, sem rodeios.
Ficas, muda e queda, a olhar para mim como se eu fosse um bicho. Mas não me desmoralizas, porque eu hoje estou a usar calças de ganga e camisola às riscas que me fazem ficar mais elegante, seja lá o que isso for. Não me desmoralizo porque estou tão à vontade com a minha situação de rebelde que peço mais uma bebida e não saio de roda de ti até te fazer esboçar um sorriso e conhecer o teu nome; Leonor. Eu sou o Rodrigo e esta é a noite em que nos conhecemos.