> Escritos: O amor moderno

20.3.07

O amor moderno

É verdade que está sol, mas porquê sair de casa se podemos ficar aqui aconchegados? Para quê estarmos com outras pessoas quando podemos partilhar-nos um ao outro exclusivamente? É verdade que não reparei nos teus olhos esperançados, mas eu não sei. Não sei tanta coisa, sou novo nisto de amar. Porque ages como se tivesses tanta experiência?
As coisas são desta maneira mas podemos tentar mudá-las. Quero ser o que tu quiseres que eu seja, o problema é que que tu queres que eu seja eu mesmo mas eu não sei quem sou. Sempre que me perco a pensar nisso, ficas sozinha no mundo real e eu deambulo durante horas e dias, até semanas, apenas para voltar de mãos vazias quando regresso.
Disseste que querias tirar-me isso de cima, dizer-me quem eu sou, mas eu não quis. E tu não insiste. Mas porquê? Tens que ser mais incisiva, tens que me chamar à razão. Só assim poderei alguma vez ouvir-te e só assim poderás alguma vez mudar-me.
Porque não atendes? Porque não respondes às minhas chamadas? Sei que hoje estava distraído, sei que hoje não te dei tanta atenção, mas agora quero dedicar-me só a ti.
Torna-se mais difícil quando não te consigo explicar porque é que olhava para o infinito quando me pegavas na mão e contavas os teus sonhos e as tuas ambições. Torna-se difícil porque te magoei e não consigo que me deixes resolver.
E agora estás despojada, na tua cama, a chorar porque o teu homem não sabe pôr o braço à volta dos teus ombros quando a angústia te assalta e a dúvida consome-te por dentro, porque pensas que o afastaste com a tua insistência a perguntar porque é que eu sou incapaz de me abrir contigo, porquê tanto medo, porquê assustado com a partilha.
E eu estou de mãos crispadas e com um nó na garganta que não desata porque as palavras não saem e cada lágrima tua aperta-me mais a traqueia.
Já não se dorme, já não se come. Não se sonha e não se vive. Estamos condenados a perecer juntos porque não soltamos o berro que nos inflama e não deixamos soltar as lágrimas e os soluços que nos afogam.
Os cabelos morenos que te cobrem a cara caiem deixando a descoberto os teus olhos molhados e assustados. Os meus olhos raiados de insanidade espreitam por detrás da franja rebelde que não me obedece e que se junta a todas as coisas que não consigo controlar.
E gradualmente desisto de passar por tua casa para te ver silenciosamente enquanto me desprezas e te reinventas a partir das partes da tua vida que eu quebrei. E eu tento também edificar-me com base no bom que tivemos mas tu levaste tudo, deixando-me as migalhas daquilo que posso conseguir, ainda que marginalmente, noutro lado.
Absorveste tanto que ficaste maior em largura. Vês mais coisas, conheces mais coisas, sabes mais coisas. Tens uma base muito maior, nunca cairás.
Eu cresci; acumulei para cima aquilo que alcancei. Fui atirando para debaixo dos pés ou para cima dos ombros tudo quanto pude enquanto pude pois seria a única maneira de conseguir sair do fundo do poço em direcção à luz. E enquanto os meus alicerces podem ser mais frágeis, posso falar durante o dia com os pássaros e conhecer as suas viagens e à noite permito-me sonhar com o mundo enquanto estou lado a lado com as estrelas bruxeleantes e tímidas e a lua que me envolve na sua doce luz de primavera.
Seguiste em frente e persegues os teus objectivos, que traçaste quando ainda éramos sementes no mesmo vaso; eu segui para cima e sonho ainda quais serão os meus projectos e como deixar de sonhar e passar a fazer.
Tornaste-te um ser humano capaz de ser frio e cruel mas foi porque eu te tirei a gentileza que ostentavas sempre como bandeira de guerra. Tornei-me num ser humano capaz de apreciar a pequena contrariedade da nuvem que passa à frente do sol porque me tiraste a raiva que eu usava como estaca de sete metros para afastar toda a gente.
Crescemos juntos, física e psicologicamente e afastámos-nos. Fomos testemunhas do amor e vítimas do que ele pode trazer. Mas não te guardo rancor e espero que sejas capaz de te lembrar com um sorriso nos lábios das tardes em que víamos o sol por entre as folhas verdes, encostados ao tronco seguro e forte daquela nossa árvore.


RCA