> Escritos: 20, ou a banda sonora da vida de nós os dois

30.3.07

20, ou a banda sonora da vida de nós os dois

4. Three Dog Night - One Is The Loneliest Number

Calcorreamos as ruas desertas, iluminadas por candeeiros espaçados que mostram também a humidade que pousa gentilmente nas pedras da calçada. Encosto os dedos da mão esquerda a um pequeno muro que corre paralelamente à rua; sinto a textura rugosa das pedras que o compõem, sei que é real. A minha mão direita aperta a tua; sei que és real e que estás comigo.
Andamos mais um bocado até chegarmos ao miradouro que se debruça sobre a cidade adormecida, limpa de carros e pessoas nas ruas. Uma calma perfeita, não trocávamos uma palavra havia minutos, é interrompida pela passagem de uma matilha de cães vadios por nós, um deles não tinha uma pata. Isto lembra-me algo do passado descomplicado que já fôra, porque esboço um sorriso triste que não te passa despercebido. Pões a tua mão na minha cara e acaricias-me suavemente. Desejo perguntar-te porquê toda esta atenção que me dás, mas ao mesmo tempo não desejo que páres. Não consigo evitar que me saia da boca para fora que fui feito para estar sozinho, mas tu não ligas e explicas-me tudo.
Que estar sozinho não pode ser considerado “estar” porque viola a conjugação do verbo “ser”, que ninguém foi feito para estar sozinho e que ninguém foi feito para estar sozinho e que ninguém deve estar sozinho. E eu bebo, maravilhado, as tuas palavras, fascinado com os teus argumentos, afogado na beleza dos teus longos cabelos pretos, cobertos de pequenas pérolas de humidade.
Levantamo-nos para ver nascer o sol, que esbate os seus raios nos prédios e nas suas varandas de ferro forjado. A tua mão procura, nova e timidamente, a minha. Ainda hoje não sei qual de nós o disse, mas nessa altura percebemos que duas pessoas como nós estão destinadas a encontrar-se. Mas sempre, quase sempre, acrescento eu tristemente, não estão destinadas a ficar juntas.
Dás-me um beijo na cara e vais-te embora, deixando-me sozinho naquele miradouro frio, húmido e sombrio, que está sobre a cidade quente, viva e solarenga.