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5.3.07

Distracções

Massajo a perna dorida. Despenteio mais um pouco o cabelo. Coço as cicatrizes no braço. Tudo serve para matar segundos, desperdiçar minutos. Tudo serve de pretexto para fugir ao tema da conversa, para me fingir ocupado enquanto ninguém me presta atenção.
Desenho teorias, desfaço castelos, projecto epopeias, diviso políticas. Tudo enquanto os momentos silenciosos se instalam, tudo enquanto te calas e olhas para o lado.
Componho andamentos, gizo estratégias, assimilo raciocínios. Tento distrair-me ao máximo, tento afastar da minha mente a conclusão de que cheguei tarde demais. Não há outra resposta; é um problema linear. Ou é sim, ou é não.
Relembro acontecimentos, estalo os nós dos dedos, abano as mãos. Num grupo de pessoas e ninguém me dirige a palavra; há que fazer passar o tempo.
Focalizo a dor na perna, concentro-me nela, faz-me companhia enquanto o tempo passa. Ordeno a todos os nervos no meu corpo a transmitir a mínima dor que sintam imediatamente; tenho por objectivo desculpar-me para poder sair daqui.
Abrando a respiração. Cada inspiração, cada batimento cardíaco, cada expiração serve para me distrair. Cada evento fisiológico serve para negar por instantes a desilusão da verdade.
Engulo em seco, sinto a electricidade estática percorrer-me os braços, enterro os dedos no meu cabelo. Sair daqui para quê? Para fazer o mesmo em casa?
Esmurro a perna sem ninguém ver, há que aumentar a dor. Castigo as paredes com os meus punhos, distribuo energia pelas paredes, inflijo mais dor. Já quase não penso.
Imagino como será passar as mãos pelo teu cabelo, como será poder abraçar-te sem receios, como será poder levar-te pela mão. Perco-me em considerações, distraio-me da dor.
Desligo-me de ti momentaneamente. Levo as mãos à cara, como no gesto que alguém me faria se eu importasse a alguém. Já não dói tanto, mas também não distrai.
Remeto a introspecções profundas numa tentativa de procurar no interior aquilo que falta no exterior. Remexo na essência do meu ser, nas fundações da minha pessoa. Toco na raiz primitiva do que sou.
Recorro a tudo para me distrair, tento tudo o que consigo para te afastar do pensamento. Nada resulta. Nada impede que a verdade se espalhe em mim como azeite.
Nada me distrai, e eu sei então que nunca vou ter alguém.


RCA