> Escritos: Desatino

20.10.04

Desatino

Desatino. As ideias correm-me pela cabeça e escondem-se em cantos escuros, onde não as posso ver, quanto mais percebê-las. A minha respiração torna-se cada vez menos pausada e sinto o coração a querer sair do peito, tal é a força com que bate. As mãos tremem-me, as pernas, dormentes. Da minha boca só consegue sair um murmúrio : "ai...". Hoje estou parvo. Mais do que o costume, até porque costumo sentir-me assim, só que hoje é especial. É o dia do inatíngivel, o dia em que nos dizem que podemos voar, mas estamos acorrentados, o dia em que tudo é à borla, mas as lojas estão todas fechadas. Desatino. Puxo do maço e tiro um cigarro. Fumo-o em tempo recorde e já tenho outro nos lábios.
Chove lá fora, mas para mim é como se estivesse um sol radioso. Ou talvez esteja um sol radioso, e eu só consiga pensar em chuva. A dualidade de critérios na apreciação da meteorologia deve-se ao vaivem de considerações que está aqui, em cima dos meus ombros, dentro do crânio. Mas será aí? É que às vezes sinto que é o meu peito, mais concretamente o tal músculo a que chamam de coração, que manda. E porquê? Vejo sol, quando sinto uma pontada maior daquela coisa estúpida de que nos sempre falaram, vejo chuva quando penso que hoje é o tal dia em que não podemos. Se calhar eu estou em tal semana, ou mês, ou ano. Não sei. O que sei é que preferia não estar restringido a palavras escritas, mas antes devia poder dizer o que digo e sinto através da palavra falada e beijada. Mas chove...
Este já foi, acendo outro. O fumo eleva-se à minha volta, mas não suplanta a minha aura. Aura de euforia, auto-comiseração, sensatez, desatino. Estarei doente? Porra, devo estar de certeza, acabei o maço em pouco mais de uma hora. Desejava tanto poder gritar isto tudo do topo do campanário, da minha varanda, em cima de um banco do jardim, no meio da rua, da janela do autocarro, para o homenzinho do guichet do metro! Já dizia o Cesário, "amo insensatamente os ácidos, os gumes e os ângulos agudos". Amo aquilo que me faz mal : os cigarros (já tenho outro maço no bolso), a bebida (tenho a garrafeira cheia), a escrita (enerva-me, pela simples razão de que não estou a dizer isto).
Já não está a correr bem, se estivesse a escrever em papel, já tinha rasgado isto. Felizmente, ficará para a prosperidade o registo dos pensamentos de um gajo como eu, que anda à nora por viver na incerteza. Incerteza de merda, só porque não tenho respostas às minhas perguntas. Agora se não tenho as respostas porque não faço as perguntas ou se não me as dão, é diferente. É que ao mesmo tempo que sinto dentro de mim uma força capaz de mover montanhas, sinto também uma fragilidade, sinto-me débil e fraco. Adoro o sabor do saber pela experiência, mas odeio quando a experiência corre mal... Podia simplesmente dedicar-me a tudo aquilo que quis sempre ser, mas tinha que vir esta doença, esta obsessão, esta necessidade doida que me desatina. E qual necessidade, doença ou obsessão, se puder ser levantada a questão? A minha parte racional quer comandar, pôr em causa aquilo que eu quero e desejo, mas a essa parte eu simplesmente digo : fode-te. Como posso ser eu governado por uma metade de mim que quer afastar-me daquilo que eu mais gosto, amo, desejo, preciso? Eu, que num rasgo de intelectualidade prosaica, disse que para ser feliz só precisava de três coisas : a escrita, o álcool e a minha musa, posso agora conceber que haja uma metade (!) de mim que queira tirar-me aquilo que é mais importante, a peça central da Santíssima Trindade da minha felicidade? Por isso é que eu renego assim a minha parte racional. Pois para se perceber aquilo que o que eu estou a passar, é preciso chamar o coração em vez da razão para que este possa responder. Invariavelmente a resposta é a mesma.
Então o que é que me tolda o juízo? O que me faz viver na incerteza? É a necessidade de palavras, pele, cheiros e prazer que não é correspondida. Ou se calhar até é, mas não acontece. Dão-me asas mas estou acorrentado. Sei que se pudesse, voava pela janela e provavelmente o vento acolher-me-ia no seu seio, mas é ao mesmo tempo o vento, tão piedoso como poderoso, que me pôs estas amarras, talvez com medo do que pudesse acontecer se eu fosse livre. Livre! Dou por mim no chão, com um cigarro nos lábios e um copo na mão e encostado à cama. A cama... Apetece-me desfazê-la por me fazer lembrar dos tempos em que voava. Dá-me vontade de agarrar no colchão, pegar-lhe fogo e atirá-lo pela janela. Quero pegar num machado e rebentar as traves todas da cama! Levanto-me de um salto e sai-me mais um "ai" dos lábios. Quero procurar no fumo do cigarro a calma de que preciso, mas reparo que o cigarro caiu no copo enquanto eu tentava gritar o que sinto. Acendo o último cigarro do segundo maço de hoje e sento-me à janela.
Olho para a rua e vejo que agora é noite. Positivamente de noite, os candeeiros da rua estão acesos e está frio. Melancolicamente lembro-me dos tempos em que se houvesse frio, era lutado com calor humano. Vejo um casalinho na rua; andam devagar, encostadinhos um ao outro e de vez em quando páram para se beijarem. Tão novitos, tão inocentes, tão ingénuos... Penso agora que quando tinha a idade deles, também fazia o mesmo. A doença manifesta-se através dos mesmos sintomas, ao longo dos tempos e das circunstâncias. E gostava. E ainda gosto. Gosto desta doença, porque pode ser tratada. Mas de maneira ligeira, para nos manter doentes para sempre. Quero sentir esta fraqueza até ao resto da minha vida, quero sentir-me dormente, quero tanta coisa que nem imaginas. Quero conseguir parar com esta obsessão paralela que tenho pelos cigarros, quero parar de beber para não ter que me levantar do chão de cinco em cinco minutos, quero conseguir levantar-me, tirar o sabor do álcool e fumo da minha boca, chegar ao pé de ti e dizer : "Gosto de ti, volta para mim.".

RCA

1 Comments:

Blogger Unknown said...

"One of those days...
With a scream stuck in our troat"

8:47 da tarde  

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