> Escritos: Chuva - Parte III - Fim

6.10.04

Chuva - Parte III - Fim

Foi então que começaram as chegar as nuvens. Primeiro, algumas pequenas e brancas, que as crianças até tentavam adivinhar a forma de uma e de outra. As nuvens foram engrossando e mudando de côr. Até que ficaram negras como breu e os dias confundiam-se com as noites. Já não se saía de casa, ficava-se junto da lareira para tentar conservar algum calor, nos dias cada vez mais frios. E começou a chover.
Dizia-se que até era bom para as colheitas, alguma água não iria fazer mal. Os dias passavam, a água continuava a cair do céu. As pessoas, cada vez mais entediadas, ficavam agora grandes partes do dia envoltas nos seus próprios pensamentos. Apercebiam-se dos seus pecados e falhas, dos seus erros e invejas, mas tinham todos demasiada vergonha para falar com os outros sobre isso. Os dias foram passando escuros e perdeu-se a noção do tempo. A chuva, implacável, ia caíndo. Teve o condão de transformar uma vila, anteriormente cheia de vida, num fantasma de si mesma. E a água começou a subir.
Começou a entrar pela soleira das portas. As pessoas combatiam-na como pudiam. Calafetaram-se as portas, tornando-as inexpugnáveis. Ao mesmo tempo que nada entrava, também nada podia sair. Mas as pessoas preferiram jogar com esse risco e assim o fizeram. Depois, começou a cair dos tectos. A água infiltrava-se por onde podia, mas as pessoas não desistiriam tão facilmente. Reforçaram os telhados por dentro, tapando todos os buracos. Não se aperceberam foi da água que se ia acumulando mesmo por cima das suas cabeças, mas também todos pensavam que a chuva era só temporária. A chuva engrossou e já corriam rios nas vielas entre as casas, que iam desaguar à praça, onde se formara um autêntico lago. E nem aí as pessoas tiveram medo.
À chuva aliaram-se o vento cada vez mais poderoso e os trovões e relâmpagos. Os que ousavam ainda olhar pela janela, assustaram-se então, com o cenário terrível de raios de luz contra a noite escura e mesmo aqueles que se afastavam das janelas, não conseguiam escapar ao assobio temível do vento, que chiava entre as pedras das paredes e que projectava a água, que nunca mais acabava, contra as janelas. E então as pessoas tiveram medo.
E lembraram-se das palavras do homem justo. Aqueles que não as sabiam, foram ensinados. As pessoas passaram a encarar com terror a água que lentamente se acumulava às suas portas, que as espreitava pelas janelas e que corria por cima das suas cabeças. E todos perceberam que o fim tinha chegado. Muitos choravam na incompreensão de tudo aquilo, outros aceitavam o destino. Mas todos, todos só conseguiam agora pensar no quanto estavam errados. Mas mesmo com aceitação de culpa, as pessoas não teriam a sua redenção.
Pois a chuva, agora cobrindo as casas completamente, atacou. Com fúria, fez voar portas, estilhaçou janelas e desabou telhados e tectos. Pacientemente tinha cercado as pessoas e agora colhia os frutos da sua estratégia. A água entrava nas divisões das casas e apanhava as pessoas. Aquelas que tentavam nadar, mais sofriam, pois a água estava tão fria, que as gelava em vez de as afogar. O vento amainou apenas para se ouvir gritos em toda a vila. Gritos de arrependimento, gritos de injúria, gritos de dor, gritos de terror.
De nada serviu aos homens bradar contra as águas. De nada lhes serviu gritarem que tinham trabalhado toda a vida contra a Natureza, a desbravar encostas, a comandar rebanhos imensos, a trabalhar para sustentar os seus.
De nada serviu às mulheres argumentar com as águas. De nada lhes serviu suplicarem por misericórdia, por terem crianças, maridos para alimentar, casas para cuidar.
De nada serviu às crianças chorarem perante as águas. De nada serviu aos rapazes confessarem os seus desejos e pecados, de nada serviu às raparigas confidenciarem os seus amores e sonhos de namorados.
A água atacou tanto o homem que tinha roubado, como a mulher que apertava os filhos contra o peito. Atacou tanto o rapaz que nunca tinha tido coragem de dizer à rapariga da casa de frente que gostava dela, como a rapariga da casa de frente que jogava com os sentimentos dos rapazes da vila.
A água atacou tanto os culpados como os inocentes. A água, fonte de vida, purificou aquelas terras cheias de inveja e amor, ócio e trabalho, pois choveu tanto para uns, como para outros. A vila teve a expiação dos seus pecados através da morte de todos os seus habitantes. Com eles morreu a falta de confiança que tinham tido no homem justo e bom e a inveja, a inimizade e o desprezo. Morreram todos pela água, agora fonte de morte. E mesmo purificada pela morte da vila, aquela região ficaria para sempre conhecida como a região da morte ou da Perdição.

RCA