> Escritos: Chuva - Parte I - Início

6.10.04

Chuva - Parte I - Início


A vida era simples. Os homens encarregavam-se de desbravar a montanha para o cultivo, as mulheres passavam os dias a tecer, coser, remendar, a tratar das crianças e das casas. As crianças, essas, passavam o dia a brincar na praça e nas ruelas da aldeia; os rapazes com mais de 15 anos iam trabalhar com os pais, tios e irmãos mais velhos, as raparigas ajudavam as mães nas lides domésticas. A vida decorria pacata em Vila Perdida (uma vila no fundo do vale), assim chamada por forasteiros por ser tão isolada. Apenas os anciãos do povoado se lembravam do verdadeiro nome da vila (que até era parecido com o nome com que fora re-baptizada) : Vila da Perdição.
Assim se chamava pois há muito tempo, rezam as lendas, um homem justo que ali vivera e durante muito tempo considerado o chefe da aldeia, desaparecera durante a noite, depois de fazer uma misteriosa profecia. Esse homem era admirado por muitos, mas alguns invejavam-lhe as suas capacidades de liderança e sapiência. Alvo de invejas e escárnios injustos, o homem continuava a sua vida, de cabeça erguida. Por fim, e já desesperados, os seus inimigos tentaram matá-lo. Durante uma colheita, tentaram simular um acidente com uma enxada, mas, apercebendo-se, o homem bom escapou ileso. Desapontado com o comportamento dos seus aldeões, convocou o povo para a praça ainda essa tardinha. De pé sobre os degraus do poço, exclamou : "Vós que me admiram e ao mesmo tempo me desprezam, que me pedem conselhos e depois escarram na minha mão estendida para vosso auxílio, que buscam a força dos meus braços para reconstruir o vosso telhado após as chuvas e que em seguida o destroiem para me ver erguê-lo de novo; vós, que aqui reunidos, não têm coragem para contestar tais acusações, não são dignos de minha companhia. Parto, portanto esta noite, mas aviso-os: a vida será fácil e até melhor, pois ultrapassarão as dificuldades da maneira como quiserem, não como eu vos ensinei. Mas chegará o dia da retribuição, em que expiarão os vossos pecados." Dito isto, voltou-se e partiu. Ainda ouviu os chamamentos das pessoas, perplexas, que tomavam aquele homem justo como um farol de orientação (mesmo não seguindo os seus conselhos) e que agora partia.
Uns, procurando ocupar o lugar do homem justo, imediatamente tentaram governar a aldeia contrariamente a como tinha sido feito anteriormente. Disseram que os terrenos já estavam fertéis e que agora o que era preciso era semear e cultivar para terem comida. Mas só semearam trigo em todos os campos, ao invés de cultivarem batatas numa parte e deixar a terceira parte dos terrenos crescer erva para as cabras. Disseram que assim toda a gente teria pão sempre e que se comeria mais. As pessoas acreditaram e assim o fizeram. Quando alguém perguntou então onde iriam pastar as cabras, arranjou-se a solução de as levar montanha acima para as pastagens do planalto. Apesar do planalto pouca erva ter para alimentar as cabras, insistiram. E quando numa noite cerrada, os pastores tentavam voltar à aldeia com o rebanho, perderam-se e foram encontrados mais tarde (dois dias depois) mortos no fundo de um penhasco juntamente com todas as pobres cabras. Decidiram então comprar ovelhas para refazer o rebanho. Teve que se desbastar o bosque para encontrar terrenos onde os animais pudessem pastar, e a aldeia ficou sem lenha durante meses. Contrariedade após contrariedade, lá conseguiram vencer todas as dificuldades, com uma solução mais engenhosa que a outra.
Assim foi passando o tempo e nunca mais ninguém se lembrou do que o homem tinha dito.
Era com determinação que agora se atacavam as encostas da montanha para as cultivarem e se conseguia. O povoamento, já uma vila, crescia próspero, seguindo as direcções de uns homens que passavam os dias na tasca da praça, sentados à sombra, a beber vinho. As pessoas trabalhavam, comiam e dormiam numa rotina já assimilada e não contestada, pois era simples. A vida era simples.