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6.10.04

Chuva - Parte II - Meio

Foi no fim da estação quente, por sinal bastante proveitosa (em que as colheitas foram de tal forma grandes que houve uma festa rija que durou três dias e três noites), que primeiro se reparou no tempo que mudava. Os ventos agrestes assobiavam nas escarpas e arrancavam as árvores velhas e mirradas das suas raízes e enregelavam as pessoas desabrigadas nas ruas da vila. Os dias foram-se tornando mais curtos e as noites cada vez mais frias. Uma manhã, a vila acordou com a notícia de que a água do poço tinha congelado. Não era inédito, o estranho era ser em pleno Setembro. Imediatamente se minimizaram os incidentes, dizendo-se que era natural após 9 meses de calor e bom sol (pois agora os verões duravam quase um ano inteiro), que viessem umas semanas mais difíceis. O povo, querendo procurar uma explicação, acreditava e já falava nas "semanas de provação" que aí vinham, como uma coisa perfeitamente natural. Mas não era. E o único que discordava era o cego que passava os dias junto ao poço. Ninguém sabia bem quantos anos ele tinha; as crianças tentavam adivinhar, os homens diziam que devia ter uns bons 80 anos e algumas mulheres comentavam que há muito que o cego tinha ultrapassado os 100 anos de vida. Verdade seja dita, já ninguém se lembrava do nome do cego e também não lhe davam muita importância. Mas como ele era agora a única voz de discórdia, cedo o apelidaram de "velho louco" e "cego burro".
Os dias agora eram cada vez mais sombrios. As crianças já não brincavam nas ruas e poucos eram os homens que tardavam a sair dos campos após o pôr-do-sol, pois havia agora o medo de se perderem nos caminhos das encostas. Chegou-se então à solução de instalar sistemas de iluminação primitivos, com candeeiros de azeite que arderiam durante a noite na vila e nos caminhos das montanhas, para proteger os vilões das trevas. Após alguns dias, o azeite começou a escassear. Mesmo assim, insistiu-se na queima do azeite como fonte de luz, até que os ventos sopraram tão fortes que os postes onde estava a chama foram arrancados do chão, que desistiram da iluminação. Decidiu-se então suspender os trabalhos no campo; afinal, havia comida que chegasse para aguentar anos de cerco. Mas cedo os homens acusaram as mulheres de se terem esquecido de como cozinhar, pois agora a comida já não tinha o mesmo sabor nem alimentava bem. No meio das frívolas discussões, alguém lembrou que já não havia azeite para condimentar a comida.
Perante estes acasos inoportunos, decidiu-se enviar uma caravana à cidade mais próxima para comprar mantimentos. Mas uns dias depois da sua partida, os homens voltaram apeados dos seus cavalos, famintos e com um ar desgraçado. Explicaram que numa tarde, quando pararam para acampar, os cavalos enlouqueceram e destruíram as tendas, atacaram homens e fugiram com as provisões para a viagem. Desoladas, as pessoas resignaram-se em esperar que o Inverno passasse.