> Escritos: 20, ou a banda sonora da vida de nós os dois

12.7.07

20, ou a banda sonora da vida de nós os dois

19. David Lanz - Silent Night

A noite fria e silenciosa insinua-se por cada frincha de cada janela e porta, intromete-se insidiosamente em mim pela pele debaixo das minhas unhas. A noite fria e silenciosa instala-se nas ruas e esconde sombriamente as poças que a chuva deixou. Esconde sadicamente as feridas que a chuva me infligiu.
De pé, contra a janela, observo a rua deserta. Vejo-me reflectido no vidro; a minha imagem mostra-me que estou velho, gasto e quebrado como uma mesa que suportou demasiado peso ao longo dos anos. A cada minuto que passa envelheço e um bocado de mim morre por dentro. Aguardo o momento em que conclua finalmente que tu não vais voltar, o momento em que descobrirei que terei que sair e procurar-te. Esse momento demora a chegar e deito-me no chão, de cara para cima. Um dos meus companheiros, o tecto, começa a cansar-se de mim e eu dele. A alternativa a tudo isto é o armário que encerra promessas de alguma paz, mas a paz durará apenas algumas horas e é carregada de ironia.
Um vento triste e que chia nas frinchas de alguma janela mal fechada bate, certamente, as árvores da rua, abanando as suas folhagens e ramos, partindo algum mais velho. Tenho medo que o vento me faça o mesmo e aninho-me como que me para proteger. Fico assim durante um bocado, de olhos fechados e saboreando o sal das minhas lágrimas.
Acordo sobressaltado. As horas passaram, continua escuro. Parece que esta noite vai manter-se noite por princípio, até que eu infira e assimile a gravidade da situação. Estava em frente ao poço e não sei em que direcção foi o passo que dei. Não sei se me deixei cair para as profundezas da terra onde vivem os animais rastejantes e se levei comigo alguma escada ou corda ou algo que me ajude a subir para a superfície onde vivem as pessoas que andam de cabeça bem levantada.
A própria incapacidade que tenho em não saber o que ficou feito desespera-me e faz-me novamente olhar para o armário, estudando, avaliando, medindo as consequências de aceitar e assinar um acordo de paz com as garrafas escondidas. Desvio o olhar para o outro lado, para o sofá. Levanto-me e deito-me nele, estou mais confortável mas o sono não vem. Massajo as pernas e braços doridos de tantas horas passadas na alcatifa. Fecho os olhos e inspiro.
Não vais voltar, pelo menos não assim. Compreendo e aceito isso. É um facto imutável e derivativo da minha deficiência emocional. Não sei como relacionar-me com as pessoas e inevitavelmente viro-me para o álcool e isso destrói-me por dentro. Não sei como mudar isso, mas também não sei se consigo mudar isso. Não sei como evitar as noites de solidão e frio que levam um pouco de mim cada vez que passam, como imposto por me deixarem vivo para a noite seguinte, onde cobrarão novamente e cada vez mais. O sono não vem e as ideias também não. O copo continua no topo da garrafa. E vai continuar assim durante a noite.

1 Comments:

Blogger An@ said...

nostalgia, tristeza, recordaçoes... algo mais!!

um abraço quentinho!*

12:34 da manhã  

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