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15.1.07

Nocturno - op. 1

Vagarosamente, abotoo a camisa. Ergo o olha para as portas envidraçadas de acesso à varanda, mesmo em frente à cama onde me sento. Do lado de fora, a cidade adormecida devolve-me o olhar, amortalhada pela neblina, velada pela escuridão, salvaguardada pelas luzes bruxeleantes de algumas janelas.
Um pássaro madrugador chilreia mas antes que consiga explanar a sua melodia, a composição é estrangulada pelo leve ronronar de uma carrinha, parada debaixo da janela.
A frequência aumenta de nível e transforma-se numa espécie de estática que me entra pelos ouvidos. Consigo sentir a ressonância da vibração na minha cabeça e nos meus ossos. Uma onda mais intensa perpassa-me o ouvido direito e depois faz-se silêncio; algo goteja na minha orelha direita.
Levo uma mão lá e depois passo-a em frente aos meus olhos. A parca enrubescência na escuridão confirma-me que é sangue. Um calor fulgurante na perna esquerda desvia-me a atenção e faz-me olhar para baixo.
Consigo ver as veias a palpitar, fazendo subir e descer o tecido rugoso das minhas calças. Um ruído agudo e baixinho insinua-se de alguma forma pelo meu tímpano direito, que está furado. Sinto os gânglios a inchar, tornando difícil a tarefa da respiração.
Mais importante que isso, constato, inexpressivamente, que tenho seis dedos no pé esquerdo. Desvio o olhar para a direita e consigo ver o dedo grande e, logo ao lado, o dedo mindinho. Afago suavemente a alcatifa por baixo dos meus pés descalços, com os dois dedos do pé direito.