> Escritos: Nocturno - op. 2

15.1.07

Nocturno - op. 2

Sinto a unha do dedo mindinho do meu pé direito a raspar no edredão. Faço o mesmo movimento para o outro dedo e ele está lá. Mais um. E outro. E o dedo grande fecha a contagem de cinco. Repito o exercício, desta vez com o pé esquerdo; cinco deste lado também. Cerro os punhos. Agora que acordei, sou um ser humano normal; dez dedos nos pés, dez dedos nas mãos.
Soergo-me e volto à posição do meu sonho, mas agora uma só luz provém da cidade envolta em escuridão, tocada por algo maléfico, que espreita por cima da figura reflectida em primeiro plano nas vidraças. Fixo o olhar nela; sinto uma aura de negrume assentar-me nos ombros. A figura que me devolve o olhar sou eu, mas com olhos dardejantes e cruéis.
Fecho os olhos. Abro-os. Semicerro-os. Acto contínuo, o meu alter-ego mimeta os meus movimentos oculares. Cedo e, como que em câmara lenta, procuro o meu reflexo no espelho da parede à minha direita, mas não estou só.
Uma sensação de uma agulha extremamente fina a penetrar-me o miocárdio, batimentos irregulares, arritmia. Uma figura negra acompanha-me.
Rodo a cabeça cento e oitenta graus para a esquerda; não está lá nada. Movimento inverso para a direita, não logrei fazê-la desaparecer. Olhei-a, então, nos olhos e ela falou. Não a ouvi pelos meus ouvidos surdos, mas antes a sua voz ebúrnea, pesada, pastosa, entrou através do olhar e propagou-se por todos os meus ossos, como se a raspar.

- Tu sabias que tens um coração de pedra.
Podias-me ter avisado.
Devias-me ter avisado.

Senti os movimentos cardíacos acelerarem e o coração gelar enquanto se calcificava. Um cheiro a enxofre foi a última coisa que o meu cérebro processou antes de se desligar.