> Escritos: Escuridão

4.12.04

Escuridão

Estamos os dois, frente a frente, num círculo. À nossa volta, visões dos tempos que passámos juntos, vistos pelos meus olhos, pelos dela e vistos por fora. Aos nossos pés, jaz uma bruma feita das vozes das pessoas que conhecemos. De vez em quando, uma dessas vozes que murmura sobe e envolve um de nós. Estamos imóveis e silenciosos. Subitamente, as vozes sobem junto dela e fazem-na desaparecer por trás da cortina de fumo. E é quando ela reaparece, que tudo muda.

Nas visões dela, tudo o que faço, ela recebe com desdém. Parece aborrecida com o que lhe digo e vejo-me, através dos olhos dela, cada vez mais insignificante e pequeno, com uma grande escuridão a apoderar-se de mim.
Desapareco das visões das outras pessoas, sou substituído por outro qualquer. Tento perceber como é isso possível. Fui eu que fiz aquilo, que disse aquilo, que lhe mostrei as coisas que ela vê! Como podem agora tentar pensar que outro qualquer merece partilhar aquilo com ela?
As forças começam a abandonar-me. Penso que seja por causa da dor que tudo isto me inflige, quando reparo na cara dela. Tem uma cara de esforço, mas ri-se. Não compreendo como se pode rir daquilo tudo. Sinto-me como que atingido por um raio quando finalmente percebo.
Ela ri-se, porque está a apagar as minhas memórias. As coisas que eu vi começam a esbater-se e a perder-se. Tento desesperadamente impedi-la de continuar a matar-me, mas ela está inabalável e impiedosa. Já nem existo nas visões dela, dei o lugar a alguém diferente em cada visão.
Agarro-me com todas as minhas forças à última visão que ainda tenho, a vez em que ela chorou nos meus braços, a vez em que ela estava mais frágil e vulnerável. Mas nem isso me salva. Ri-se com desprezo dessa visão e apaga-a como se nunca tivesse existido. E reduz-me à insignificância, como se eu nunca tivesse existido também.
Sinto-me então cair num grande poço, feito de escuridão, sem fundo. Caio cada vez a maior velocidade, mas parece que nunca chegarei ao fim desta queda. Enquanto caio, não consigo deixar de pensar porque é que ela me fez isto, mas não consigo culpá-la, pois perdoar-lhe-ei sempre tudo. Mesmo que isso me mate, que é o que me está a fazer.


RCA