> Escritos

2.9.08

Sonhos

Iteração.

Deitados, na cama, vivo em suspenso mediante cada inspiração tua. Acordado, sozinho na noite e no prédio, dedico-me a pensamentos impensáveis durante o dia, quando acompanhado de alguém e de luz, à semelhança do edifício, que aproveita a noite silenciosa para se ajustar nas suas fundações e alicerces, quando acredita que ninguém o pode ouvir. Mas eu ouço e, por solidariedade, ajusto os meus planos em função das tuas acções. Lembro-me do teu sorriso, tão forçado que até a mim me doeram os dentes de tanto esforço que fizeste para que as aparências não destoassem. Algo mudou. Algo não está correcto. Consigo sentir uma encosta descendente para o sonho. Consigo aperceber-me de algo escuro, algo novo e sedutor e tu ficas aí, quieta e muda a meu lado, deitada a dormir e sem nada fazeres. Mas isso já não espanta; nem a escuridão aparente que me pode trazer o sono é-me estranha.

Percorro o habitual corredor da academia. Por entre portas abertas vou vendo fogo e noite, truques de luz e escuridão operados em frente aos anciães quadros de ardósia. Não posso deixar de me sentir maravilhado com as coisas que aprendi quando novo e que hoje ponho de lado a cada momento. E enquanto aprecio o espectáculo oferecido à diligente juventude, movida a curiosidade, café e outro tipo de energia emprestada, reparo na figura ubíqua, no denominador comum, na pessoa que se me vai iludindo de sala em sala. E vejo-te, em todas as tuas encarnações, nas salas de aula, nos corredores, na biblioteca, nas salas de estudo sem nunca apanhar de ti mais do que um olá de circunstância. Empenho-me, então, em nada mais do que ser mestre dos mesmos truques que extemporaneamente surgem de todos os recantos. Só quando finalmente me preparo para abandonar os livros e abraçar o conhecimento é que reconheces a minha existência corpórea. E, no meio dos últimos ensinamentos de água e terra, vida e morte, surges a contra-luz na soleira da porta, dando-me a mão e a conhecer o reverso da medalha. Deixo então de falar com os aguaceiros e estes, desiludidos, recuam e desfazem-se no esquecimento do fundo da sala. Dirigimo-nos para os portões, lá para fora, para a vida adulta.

A gota de água no mundo produz um pequeno arco-íris improvisado entre letras e números, assuntos de gente crescida e importante. Pouso a garrafa enquanto me lembro da outra gota – ou será a mesma? – de água, solitária na porta de vidro do chuveiro, que não se movia. Exaspero perante a contradição; consigo controlar coisas significativas como o aguaceiro quente que gentilmente me cai sobre a cabeça e ombros mas não consigo que uma gota irrisória se agrupe às irmãs e desça para o seu destino. Prescindo de mais confrontações e deixo-a em paz.

Regresso à realidade com o peso de um relatório que bate no tampo da minha secretária. Fogo e noite, relembro ao meu colega. Não parece ter percebido a referência e pergunta-me se ouvi o que ele dissera e sossega quando eu aquiesço, embora não o tenha feito, pelo menos que me lembre. Fica parado, a olhar para as paredes, como se a sua única função fosse estar ali e aconselhar-me sobre assuntos para os quais não tenho aptidão. E, enquanto folheio distraidamente o documento maçudo e sem conteúdo, lembro-me das paredes lá de casa e ao que elas já assistiram. Nelas ficaram gravadas as sombras do que fomos e da indiferença que me dispensas ampliada tantas e tantas vezes a partir da com a qual eu te tratava. De pé, no nosso quarto, olho para as minhas mãos impotentes, pensando em como perdemos o controlo e sinto os dedos contorcerem-se em desespero. Não rasgues, avisa-me o meu colega que já não olha para o tom neutro que cobre a parede em frente e que me faz pensar se não estaria a fazer o mesmo que eu. Largo o relatório que principiava a destruir e, passando a mão pela cara, tiro o casaco dos ombros da cadeira e vou para casa. Parado no trânsito, olho pelo retrovisor e, do banco de trás, os teus olhos encontram-se com os meus. Arranco e paro; relanço o olhar e vejo um braço de homem à volta dos teus ombros e um sorriso nos teus lábios. Torturo-me e olho-te nos olhos, mas este sentimento torna-se velho e o teu olhar também.

Gradualmente, desço a um sono sem sonhos e desconsolado em que o fio branco dos auscultadores contrastando com a tua pele morena se torna o fio condutor de um pensamento que se vai formando e esfumando no horizonte. Acordas-me gentilmente e dizes que vais para casa. Replico que moras aqui e tu dizes qualquer coisa acerca de casa da tua irmã que não percebo porque virei a cara para a almofada do sofá. Fico então a pensar se o meu colega não teria razão quando afirmou que já não há romance e se ele ainda estará sentado no escritório vazio, silencioso e escuro, a olhar para as paredes.

Cansado e doente, o vento que me bate nos ouvidos traz murmúrios e resquícios da tua voz, segredos de ânsia e súplicas, como se estivesses perdida, mas o nevoeiro baixo e espesso enche o meu mundo de cinzento. Desorientado e desconfiado, dou o primeiro passo.

8.7.08

(contra) Definição

Na verdade, o meu único medo é que a morte seja igual à vida.


RCA

Definição

O meu único medo é que a morte seja como um sono sem sonho; estéril, inútil, frio e solitário.


RCA

19.12.07

Compreensão

Parte III - Retomar

Uma brisa, leve, faz-me regressar à esplanada e à mesa. A chávena, vazia, começa a perder o brilho do reflexo do sol, que se esconde para lá dos prédios vazios. O cavalheiro de azul fita-me inexpressivamente. Olho para as palmas da minha mão: não, não as conheço. Se não conheço as ferramentas que me darão tranquilidade, como poderei utilizá-las de forma adequada?

'Causa e efeito' ouço a minha projecção do meu eu futuro dizer. 'O quê?' replico. 'É uma questão de causa e efeito. Tu acordas de manhã e vais para as aulas. Passa-se alguma coisa, com alguém, um colega, um professor, uma rapariga, qualquer coisa. Essa é a causa. O que depois se passa dentro de ti, o que sentes e como reages, o que dizes, fazes ou deixas de dizer e fazer é o efeito. Consequência natural dos acontecimentos anteriores e de um processo neurológico que ocorre dentro de ti. Processo esse que é influenciado por tudo o que tu és: as tuas vivências, experiências, desejos, o teu ser primitivo e profundo. Esse és como nasces. Mas também resultas dos genes que tens. Causa e efeito. És assim porque o teu pai e a tua mãe se conheceram e ocorreu uma combinação genética com probabilidade de acontecer perto de zero. Causa; isso vai influenciar as escolhas inconscientes que farás no início da tua vida, antes de começares a colectar memórias e conseguires juntar conceitos. O efeito serão as tuas decisões.' Parou para gozar os últimos raios de sol dourado.

'Causa e efeito. Ou, se preferires, causa e efeito, efeito, efeito, efeito, efeito, efeito... Sendo a primeira causa a primeira acção de todas do ser que foi responsável pela tua génese.' Calou-se e fechou os olhos. Manteve-os assim durante uns minutos; a primeira vez que o vi fazer isso.

'Como é que sabe isso tudo?' perguntei, curioso. 'Oh! Sei-o porque tu o sabes. Eu só sou tão fluente e capaz de me explicar bem quanto tu o és. Eu derivo de ti: eu sou o último efeito. E agora, ao explicar-te isto, estou a causar um novo ciclo. Estou a permitir-te transformares-te em mim. Um novo ciclo, mas agora virtuoso, ao invés do ciclo vicioso em que vivias e que te oprimia o peito.' O cavalheiro do fato azul desembaraçava-se com uma facilidade notável das minhas questões.

'Hmm, mas um ciclo não tem início. Teoricamente... é essa a sua definição.' intervenho. 'Teoricamente. Mas na prática... estamos a começar um.' e aqui sorriu. Sorriu de tal maneira que a sua boca se alargou e a sua cara exprimiu mais nesse momento do que até ali. Compreendi, finalmente, o que significava verdadeiramente este sonho para ele. Era a sua existência que estava em causa. Era a minha felicidade que se jogava. Aceitei o desafio.

'Então... assim que eu regressar e começar a... escrever... a libertar-me das coisas...' começo mas sou interrompido: 'Ah mas escrever não é, necessariamente, a única forma. Há mais. Falares com as pessoas, ouvires as pessoas... tudo conta.' salvaguarda o meu eu futuro, que agora com confiança acreditava ser possível que me transformasse nele.

'Sim, claro. Mas se eu fizer isso, e fizer bem... Quanto tempo demorará?' pergunto, mais uma vez infantilmente. Com um tom não de paternalismo mas de genuíno afecto, o cavalheiro responde-me: 'Não é imediato. Nem podes esperar que seja; aliás, vai demorar algum tempo. O que tens de perceber é que não há receitas mágicas. Tens que saber esperar. Tens que saber agira em conformidade com aquilo que queres e, sobretudo, com aquilo a que te propões. Se fosse imediato, qual seria a piada do jogo? A vida só tem piada se nos depararmos com algumas montanhas e alguns penhascos. Se fosse sempre uma planície saberias logo o que esperar. E isso tiraria toda a graça do jogo.'

'Então a vida é um jogo... Engraçado, para quem não sabe nada sobre si próprio, o senhor sabe muito sobre a vida.' digo eu, um pouco na defensiva. Com um sorriso ternurento, o cavalheiro de azul escuro responde: 'Eu sei o que tu sabes. Eu sou apenas uma projecção tua. Tu já sabias tudo isto, estavas só à espera de o verbalizar. Essa verbalização aconteceu desta maneira, num sonho. Digamos que eu sou apenas... um catalisador.' Posto isto, levantou-se e levou o jornal consigo. À medida que se afastava, em direcção oposta à do sol, ocorreu-me que não sabia para onde ir.

'Espere!' grito, levantando-me e iniciando uma corrida para ele. 'Como é que volto para trás?' O cavalheiro voltou-se e, sempre sorrindo, diz-me apenas: 'Eu só criei esta cidade. O sonho é teu, tu é que mandas. Certamente saberás e poderás fazer o que quiseres.' Virou-me pela última vez costas e prosseguiu a marcha, sem hesitar. Voltei para a esplanada e sentei-me na mesma cadeira onde estivera as últimas horas. Ou minutos. Ou segundos, não sei quantificar. Se, de facto, estou a sonhar, até pode ter sido mesmo pouco tempo. Deixo-me ficar por ali, esperando um sinal. O sol põe-se completamente e sou envolvido pelas sombras. Os meus olhos habituam-se rapidamente à escuridão instalada. As lâmpadas dos candeeiros da praça não se iluminam e do café e dos outros prédios não chega luz. Fecho os olhos e inspiro fundo. Reparo, com alguma surpresa, que o ar é salgado, como se fosse maresia, como se estivesse junto ao mar.

Abro os olhos. Estou deitado, de volta à minha cama. Levanto-me e sem hesitar lanço-me para a secretária onde pego numa folha solta e numa caneta e escrevo. Escrevo até os meus dedos estarem dormentes e faltarem-me as palavras. E enquanto o peso do meu peito se levantava a cada palavra escrita, enquanto a garganta se libertava do nó opressor a cada sentimento nascido de uma situação vivida e incompreendida que era posto no papel, enquanto as lágrimas recuavam a cada folha que retirava do caderno para continuar a escrever, sabia que este era o caminho certo para ser, um dia, o cavalheiro vestido impecavelmente de fato azul escuro e poder sorrir de forma genuinamente afectuosa.


RCA

10.11.07

Compreensão

Parte II - Aceitar

Aquiesço; é, de facto, uma cidade notável. Mas isso não explica porque é que eu sei que foi ele quem a fez e porque é que a fez e, acima de tudo, porque é que eu não consigo descobrir quem ele é. Talvez o cavalheiro se tenha apercebido da minha hesitação, pois por trás da chávena que levou à boca vejo uma sobrancelha erguida. 'Podes perguntar à vontade', informa-me ele. E não consigo conter mais as palavras.

'Porque é que eu não sei de onde é que o conheço? Porque é que estamos aqui? O que é que estamos aqui a fazer?' disparo tudo de uma vez.

'Bebe o teu chá. Está a arrefecer' faz-me notar enquanto aponta para a chávena inamovida desde que o cavalheiro me a serviu. Como que envergonhado por aquele reparo, bebo um bocado de chá. Imediatamente uma onda de calor percorreu-me o tronco e uma sensação de descompressão propagou-se pelos meus membros. Enquanto contemplava o meu reflexo trémulo na superfície ondulante do chá, o cavalheiro abre o jornal e começa a ler. Uma pequena brisa é audível e só é cortada pelo barulho das folhas de jornal que são viradas. Olho para a capa e tento ver a data; impossível. Concentro-me então nas notícias e sinto o coração saltar uns batimentos ao reparar que a fotografia na capa parece-se com a de um homem, de um homem tremendamente familiar.

Tento então espreitar para as páginas dobradas sobre os dedos do cavalheiro de fato azul escuro e vejo imagens, palavras, frases de coisas que eu já vi, ouvi, disse, fiz. E nas páginas centrais vejo uma fotografia dela. E delas. E das coisas que eu escondo bem dentro dos recantos mais profundos e negros do meu ser porque me envergonho delas. Confuso, bebo um pouco mais de chá, agora completamente gelado e sem sabor. Desvio o olhar para os prédios do outro lado da praça: consigo ver através das janelas tão limpas que nem reflectem a luz. Consigo ver as fundações de cada edifício e as estruturas parecem esqueletos gigantes de projectos que nunca foram em frente, de ideias que pareciam óptimas em teoria mas que na prática colapsaram ao primeiro contratempo.

E o cavalheiro de fato azul escuro, enquanto vira as páginas, solta umas exclamações como: 'Ah, sim!' e 'Oh, esta deve ter doído'. Mas mais perturbante foi o que disse quando pousou o jornal e disse sem hesitar: 'Sim, no fundamental, teria feito o mesmo. Voltaria a fazer o mesmo'.

Perante isto, não consigo deixar de perguntar: 'Voltar a fazer? Mas o que é que estava a ler?' Com um aceno do braço descomplica a pergunta e desarma-me, dizendo que estava somente a ler as cotações da bolsa desta semana com um sorriso matreiro na cara.

'Agora, se me recordo bem, tinhas umas perguntas para mim. Muito bem, comecemos pelo princípio.' Ajeita a cadeira para ficar mesmo de frente para mim e, com um arrepio a percorrer-me as costas, sinto que olha directamente para a parte direita da minha cara, obscurecida pela penumbra, mas como se olhasse directamente para dentro de mim. 'Já reparaste que nesta cidade não vive ninguém? E que não há lixo? Ou que nem sequer precisaste de vir de carro e de procurar um lugar para estacionar porque havia um transporte quase à porta de casa onde acordaste até este lugar, ao qual vieste ter tão naturalmente?' Pausa para tomar mais um pouco de chá. Da sua chávena ainda se levanta, lânguido, um pequeno vapor. 'Já reparaste que esta cidade é tudo quanto tu alguma vez quiseste?'

'Então quer dizer que estou a sonhar. Ou estou morto. E que quem fez esta cidade aparecer, e presumo que tenha sido o senhor, sabia tudo sobre o que eu desejaria numa cidade.' Parei porque o cavalheiro estava a sorrir. Prossegui: 'Das duas, uma. Morri e o senhor é Deus e isto é o meu Paraíso. Mas não pode ser porque se eu realmente estou morto, veria novamente aqueles que me eram queridos e que morreram antes de mim. Então há ainda outra hipótese; estou morto e isto é o meu Inferno e estou condenado a ficar aqui isolado para sempre.' Parei, ao sentir o familiar nó apertar-se na garganta. ' Mas eu fui bom. Eu tentei sempre fazer coisas boas' disse com a voz embargada, de forma infantil, com os olhos rasos de lágrimas.

'Oh sim, tu és bom. Repara que eu uso o Presente. Tu és bom. És um pouco infeliz, mas creio que isso se pode alterar. Não, não morreste. Por isso há ainda a terceira hipótese, a que não formulaste e a que julgo, porque creio que já percebi a tua linha de raciocínio, estar mais próxima da verdade. Continua.' encorajou-me ele.

'Então se não estou morto, estou a sonhar. E o senhor...' hesitei. 'Sim?' perguntou-me ele, já com os olhos a brilhar.

'Então o senhor sou eu. Mais velho. Mais... adulto. Mais... qualquer coisa. E é por isso que eu o conheço: é parecido comigo, mas o tempo modificou-lhe um pouco as feições e claramente trata melhor de si do que eu a mim próprio. Mas se eu estou a sonhar, como é que posso sonhar comigo mesmo no futuro?' E aqui estava genuinamente confuso.

'Sim, de facto, como? Sabes o que eu acho? Acho que eu sou uma imagem que tu projectas para ti próprio de um futuro de sucesso, de felicidade. É por isso que eu sei tudo sobre ti mas tu quase não sabes nada sobre mim. Sabes o produto final, não sabes como lá chegar.' confessa o cavalheiro, sempre a fitar o lado direito da minha cara, como só esse lado pudesse saber a verdade, enquanto o lado esquerdo, banhado pelo sol, rejuvenesce a cada momento que passa e a parte que a completa envelhece com o peso do conhecimento.

'Então mas porquê agora? Porquê eu estar a sonhar com isto hoje? Seja hoje quando for. Aconteceu alguma coisa para ter provocado este... sonho, esta situação.'

'Oh, acho que isso foste tu que fizeste inconscientemente. Ou subconscientemente. Querias dar um pontapé de ressalto na tua vida, mudar o rumo, subir-lhe uns furos. E convocaste-me para eu te dar umas dicas.'

'Isso quer dizer que posso fazer isto sempre que quiser?' pergunto infantilmente ao cavalheiro de fato azul escuro impecável que sou eu. Deve ter reparado na excitação que passou pela minha mente e fez brilhar os meus olhos momentaneamente.

'Não. Aconteceu desta vez porque aconteceu. Não pode ser sempre que quiseres. Da mesma forma que não é Natal ou o teu dia de anos todos os dias.' acrescenta com candura.

'Então...' e o nó na garganta começa a desapertar-se 'posso perguntar-lhe coisas? Posso saber alguma coisa do futuro?'

'Não... eu sou apenas uma imagem, um reflexo dos teus desejos. Nada sei de mim mesmo, mas sei de ti. Do teu eu presente. Do que queres, do que sabes, do que tens medo, do que pensas quando olhas para o infinito. E é disso que eu te posso e...' hesita 'quero falar.' conclui, enquanto desvia o olhar e bebe um pouco mais de chá.

'Porque é que todos os dias sinto o coração na boca? Porque é que às vezes sinto a garganta fechar-se e picadas nos olhos?' lancei as perguntas mais prementes, até porque durante quase toda a conversa foi o que se passou.

'Isso é porque não lidas com os teus sentimentos de forma correcta. Tens que arranjar um modo de escapar às tuas preocupações diárias e futuras. Se bem que os teus receios do futuro só se cumprirão se não acatares os conselhos que te posso dar. Se fizeres o que vais perceber que tens que fazer, eu concretizar-me-ei. Não sei se esta expressão existe, mas é o melhor que consigo arranjar' confessa o cavalheiro.

'Então o que é que eu posso fazer? Eu tento perceber o que é que se passa de mal. Eu sento-me e tento analisar porque é que fiz isto desta maneira e não de outra e o que aconteceria se tivesse optado por outra coisa completamente diferente.'

'Pensas demasiado. Já te disseram isto mais do que uma vez, já te repetiste a ti próprio vezes sem conta e continuará a ser verdade a menos que saibas pensar menos, mas melhor.'

'Então o que é que posso fazer?' repito a pergunta. E continuo: 'A única coisa que sei fazer é pensar sobre as coisas. Interpretá-las e catalogá-las em diferentes secções na minha cabeça, acessíveis para quando precisar delas. Nada mais.'

'E isso é uma coisa boa. Quer dizer que já sabes separar o que realmente importa das coisas acessórias.'

'Então qual é o próximo passo? Agora que já percebi. O que é que devo fazer agora?' pergunto, sempre no tom infantil que já tomei por normal.

'Agora escrevemos.'

E a inclusão da forma plural não me passou despercebida, mas achei-a lógica. Pensei que seria uma daquelas coisas que não damos muita atenção imediatamente, mas um dia quando tivermos tempo para pensar, percebemos que deviamos questioná-la ali mesmo, na altura.

E enquanto considerava todas estas coisas novas, o cavalheiro de azul escuro serve-me um pouco mais de chá que bebo maquinalmente, enquanto olho distraidamente para a praça deserta, aberta sobre os raios de sol que caiem nesta cidade que eu criei para mim mesmo; enquanto olho para o infinito.

21.10.07

Compreensão

Parte I - Chegar

Abro os olhos, como quem acorda, mas não é como se acordasse. Sei, instintivamente, que algo mudou, está diferente.

Deitado na minha cama, não ouço o reboliço nas ruas que seria de esperar. O sino da Igreja não bate as horas, não se ouve os ruídos do trânsito e as conversas das pessoas não chegam cá acima pela janela do meu quarto.

Levanto-me sem propósito a não ser aquele que tenho todas as manhãs: levantar-me, tomar banho, vestir-me, comer qualquer coisa à pressa, ir tratar da minha vida como um cidadão respeitável, se bem que quase todos os dias não sei porque o devo fazer. Mas hoje não sigo a rotina; se lá fora não o fazem, porque devo eu? E então visto-me e saio pela porta de casa.

Para minha leve surpresa, saio directamente para a rua. Um momento de estranheza e tudo encaixa. Foi como se sair pela porta de casa e entrar no pátio dos elevadores fosse uma coisa antiga, de casa dos nossos pais que não visitamos há anos, e se nos lembrássemos agora, numa reminiscência infantil. Não; agora é assim e não o devo questionar.

Vagueio pelas ruas imaculadas, solarengas. As árvores, viçosas e verdejantes, contrastam com o azul límpido do céu, expurgado de nuvens e traços de aviões. Os prédios apresentam, orgulhosamente, fachadas limpas e pintadas de fresco. Não há caixotes de lixo a transbordar e não se vê um jornal perdido a esvoaçar nas estradas libertas de carros. Devo ter entrado num modelo de cidade, pronto a estrear, esperando apenas que chegassem os seus habitantes.

Ao pensar em habitantes, apercebo-me que ninguém circula nas calçadas e vivalma assoma às janelas para me acompanhar neste passeio. Mas é natural, certamente. Foi como se tivesse acordado entre momentos do mundo e este ainda não tivesse carregado as pessoas para aqui viverem. Ando mais uns momentos, sem rumo nem destino traçado, até chegar a uma estação de metro. Algo me diz que devo entrar e faço-o sem questionar.

Dirijo-me às bilheteiras automáticas, mas não as há. Olho para as escadas que dão acesso ao cais e não vejo torniquetes. Sigo então para as linhas e vejo que um comboio me espera, de portas abertas, convidativo. Entro, sento-me, sempre sozinho.

As portas fecham-se e as carruagens, imbuídas de movimento, começam a abanar ao longo do túnel escuro que percorrem. Ao fundo, bem ao fundo, começa a surgir luz. O comboio desacelera e pára na estação. Deixo-me sentado enquanto as portas abrem e assim permanecem. Ao fim de algum tempo (não sei precisar se segundos ou minutos), compreendo que este comboio não vai a mais lado nenhum e apeio-me.

Sigo as indicações para a saída que aparenta ser a única. Não deixo de reparar na estação: majestosa, com abóbadas altas e bem iluminada pelo sol que penetra numa clarabóia imensa no topo. Uma estação que não destoaria da Inglaterra Vitoriana, penso. Subo as escadas sem dificuldade em direcção ao sol lá de fora, não o emprestado pelo vidro no tecto. Não deixo, mesmo assim, de ser momentaneamente ofuscado.

Pisco os olhos infantilmente durante alguns segundos. Depois, como que impelido apenas pela curiosidade, ponho-me em marcha outra vez. Esta dura apenas uns minutos pois, ao virar de uma esquina, vejo alguém. Sentado numa esplanada soalheira, numa praça ampla, liberta de obstáculos, onde o sol bate de forma convidativa, espera alguém. De mim, compreendo sem dificuldade. Aproximo-me e quando começo a distinguir as suas feições, levanta-se e saúda-me amigavelmente, como que a um companheiro de estudo ou trabalho ou equipa de longa data . Há algo na sua cara, nos seus gestos, no seu fato azul-escuro impecável, no seu nó de gravata perfeitamente encostado à gola da camisa branca imaculada, que me faz suscitar dúvidas: eu conheço-o, mas de onde? Como alguém conhecido mas há muito desencontrado. Percorro todas as minhas memórias mas não o sei localizar.

'Senta-te', diz ele apontando uma cadeira, enfatizando o convite. Silenciosamente, obedeço e sinto o sol a queimar-me de perfil, enquanto o meu lado direito permanece na sombra. Apercebendo-se do meu desconforto, abre um guarda sol que atravessa a mesa. 'Pronto, assim está melhor, não?'

Aquiesço silenciosamente. Antes de se sentar, pergunta: 'O que queres tomar? Não, espera. Eu sei. Volto já' e entra no café. Interrogo-me uma vez mais sobre quem será ele, o cavalheiro que tem o cabelo bem penteado e faces sem traço de barba. Perco-me em considerações até que o vejo sair do café, com um tabuleiro nas mãos e um jornal enrolado debaixo do braço. O café, num prédio antigo mas restaurado, aparenta ter mais idade que a minha multiplicada por seis: lá dentro, as traves que suportam o tecto são de madeira, como o balcão, as mesas e as cadeiras. Tem um aspecto acolhedor e amigável, mas cá fora há o sol, o azul do céu e... o cavalheiro de fato e gravata.

Pousa o tabuleiro e começa agora a servir chá de uma pequena chaleira de porcelana. Estende-me uma chávena e toma uma para si também. Olho para a minha: tonalidades laranja, como a indicar um equilíbrio que há muito não sentia, tremem sobre a mesa que está coxa.

'Ah! Espera' diz o cavalheiro. Toca com os dedos na perna na mais curta e esta toma o tamanho das suas irmãs; a mesa, agora equilibrada, deixa de tremer. 'Assim está melhor.' continua, fitando-me. 'Chá preto com tília. O teu preferido, não é?'

E enquanto tentava perceber como é que ele sabia aquilo, ouço o dizer: 'O que achas?' apontando para a cidade com o braço, num gesto de aparente orgulho, mas que secretamente era de despreocupação 'Perfeita, não é?'

1.8.07

Sonhos

Sequências.

Abro os olhos; a luz forte do sol desmaiou as cores. Vivo num mundo a preto e branco durante alguns minutos, sendo a única cor presente a do azul vivo dos meus calções. A pele, quente, anseia por frescura. Cedo ao seu desejo e dirijo-me ao mar, onde mergulho nele. Volto para a minha toalha, onde, a seu lado, estás tu deitada, ao sol, como uma daquelas actrizes famosas. Só te falta o copo de cocktail ao lado e poderias ser uma.
Saio do duche e visto um roupão. Sento-me numa cadeira no terraço do nosso quarto de hotel; o sol põe-se gloriosamente sobre a baía e, ao longe, nuvens escuras preparam o seu assalto à terra firme, onde depositarão a sua água durante uma meia hora e dissolver-se-ão para reagruparem amanhã, sobre o mar revolto. A tua voz chega-me aos ouvidos lá de baixo. Espreito, debruçado no corrimão, e vejo-te a falar com alguém, oculto por uma árvore qualquer, daquelas que só crescem nestes sítios tropicais. Pareces rir, pareces satisfeita. Recordo o ar de leve indiferença que me tens dado nos últimos dias e um batimento cardíaco fora do lugar faz-me pensar na tua fidelidade. Concentro o olhar na água transparente do mar e tento fechar a mente a outras considerações.

Vive-se de noite. Sai, de um tugúrio na parede, luz que convida. Entro na casa velha e encontro alguém que reconheço, ainda que fugazmente, e que me indica a porta que dá para o quintal. Lá fora, de roda da mesa, um grupo de pessoas conversa à luz eléctrica das lâmpadas de baixa voltagem, o que confere uma aura soturna sobre a noite. Estás sentada, uma versão mais nova de ti, ao colo de uma mulher. Sento-me na cadeira vaga, a oposta, e fito-te. Tens o quê, 15 anos? Como rejuvenesceste? Alguém fala sobre férias e não consigo deixar de franzir uma sobrancelha. Como se perguntasse porquê este tema, antecipas-te e dizes-me para acordar. Quando replico que estou acordado, riste-te e repetes a advertência.

Estou acordado, digo eu novamente. Agora estás, respondes tu. Assusto-me ao ver a tua versão do presente. Olho à minha volta; adormeci, embalado pelo sabor do rum e o odor das folhas de tabaco, por entre as cortinas de fumo dos charutos fumados por homens com aspecto de negócios medíocres e respectivas mulheres com ar de quem era capaz de ir para trás da palmeira mais próxima e enganar o marido ali mesmo. Não te distingo delas e refiro que estou cansado para arranjar uma desculpa para ir para o quarto.

O naufrágio parecia inevitável, mas não páro de acenar ao barco, da falésia. O recife é traiçoeiro e a maré baixa, mas aparentemente o capitão não o sabe. Começo a gritar mas perdem-se os avisos no vento marítimo que bate forte e bruscamente. Sou varrido por uma vaga e a custo levanto-me, mesmo a tempo para ver que a quilha embate numa rocha e o casco quebra-se. Um só marinheiro vem à amurada, talvez para fazer um relatório de estragos. Fita longamente o sucedido e volta para a ponte, talvez para relatar a ocorrência. O sol acaba de se pôr e a noite passa rapidamente: nem dei por ela. O barco ficou encalhado e aguentou estoicamente a provação. Ao alvor, reparo na tripulação que abandona o navio nos escaleres, enquanto que o capitão, que ficara para trás, desce ao recife e deposita qualquer coisa junto à brecha no casco. Sobe novamente para bordo e vejo-o manejar um instrumento. Percebo que vai dinamitar o que resta do casco e que prende-o ao recife, numa tentativa desesperada de se soltar. Grito novamente para preveni-lo da loucura mas calo-me quando consigo olhar bem para o capitão, reconheço-me na sua azáfama. Reconheço-me porque ele sou eu. E olho com pavor a explosão causada e que certamente foi mal calculada: o navio explodiu na sua totalidade.

Ouço então o ruído da explosão; chega-me agora aos ouvidos através da porta que bates. Deitado, semi-despido sobre os lençóis, o cabelo adeja-se-me à testa com o suor. Acendes uma luz e protesto perante tal acção. Apagas a luz e deitas-te a meu lado na cama. Não te vi despir mas parece-me que o estás. Puxas-me um braço para ti e dizes qualquer coisa de que me devia recordar, mas ignoro-o. Mudas de posição: estás agora deitada em cima de mim e beijas-me e levas-me a mão pelo teu corpo quente. Mesmo quente, tão quente que queima. Onde estiveste? Respondes que foras a uma festa ali ao lado e continuas a beijar-me, agora na cara e no peito. Vou a dizer qualquer coisa, mas percebes que o meu peito se eleva com a inspiração aquando da formulação das palavras e pões dois dedos na minha boca, para me calar. Fecho então os olhos e deixo-te fazer o que quiseres comigo.

Sais para o trabalho, eu fico em casa. Já ganhei dinheiro suficiente este ano para não ter que pôr os pés no escritório durante uns tempos e decido-me por ficar os dias em casa, a dormir no sofá enquanto a televisão, ligada e com o volume no mínimo, deixa-se contentar por ser companhia. Chegas e trazes contigo um sorriso. Animada, mostras as compras de meio da tarde e indicas que vamos jantar fora, com amigos. Que amigos, interrogo-me silenciosamente. Olho pela janela e semicerro os olhos. O que é que vais fazer agora, perguntas. Não podes ficar os dias todos em casa, continuas, e eu confesso-te que me apanhaste num momento de fraqueza. Ainda não sei, ainda não pensei nisso, minto. Desprezas a minha fala e vais tomar um duche. Genuinamente interessado, sigo-te até à casa de banho e observo-te, pela porta entreaberta, enquanto te despes e entras na banheira. Apercebes-te disso e convidas-me a entrar mas replico que tenho que me vestir e vou para o quarto fazê-lo.
À mesa, com todos presentes, ouço-me fazer um brinde ao nosso amigo comum que se vai embora em breve e que por isso devemos beber a nós todos: porque somos jovens, atraentes e estamos vivos no meio do nosso poder e fortunas obscenas. Enquanto bebemos e eu me sento, sinto a tua deslizar sobre a cadeira e procurar a minha. Segredas-me ao ouvido que queres que eu beba, que tu levas o carro para casa e que hoje eu tenho que me divertir. Como um rapazinho, obedeço-te. Bebemos todos e saímos para as ruas calcetadas e que sobem por entre os prédios baixos e que têm varandas de ferro forjado. Nos rés-do-chão, bares vendem a jovens, tão díspares de grupos sócio-económicos e culturais. Repreendes-me por estas considerações, chamando-me de velho. Surpreso, vejo melhor a tua roupa justa que te realça as curvas do corpo. Beijo-te e beijas-me também, partilhamos o mesmo furor que o calor de meia noite nos traz.