> Escritos: 20, ou a banda sonora da vida de nós os dois

26.4.07

20, ou a banda sonora da vida de nós os dois

8. Ryan Adams - Desire

Desligamos ao fim de horas. Olho pela janela, o dia já foi. Tiro o telemóvel do carregador e levanto-me do chão. Vou até à janela e deixo-me ficar a ver a rua deserta enquanto penso em tudo o que me disseste. Ficámos de nos encontrar, ficámos de nos beijar.
Passo a mão pela humidade do vidro, depois refresco a cara. Sinto-me afogueado, a arder de tanta vontade de voltar a ligar-te para confirmar tudo o que te ouvi dizer na tua voz tentadora. Mas conformo-me em tomar um duche de água fria e comer qualquer coisa antes de me deitar.
Fico horas às voltas na cama; não consigo dormir porque estou cheio de calor. Calor este proveniente do fogo que me consome por dentro; é o desejo por ti, pela hora que não chega de voltar a poder segurar na tua mão pequena e tímida, pelas curvas do teu cabelo que vou poder acariciar, pela tua pele da tua cara que deslizará sobre os meus dedos, pelos teus lábios sensuais que vou ter o prazer de tornar meus.
Como que a torturar-me, os minutos negam-se a passar e a luz tarda a vir. Permaneço, ali, no escuro enquanto aguardo pelo segundo em que o despertador tocar para ir ter contigo. Pego no telemóvel para te ligar, mas antes de efectuar a chamada, travo-me. Não vale a pena impedir-te de dormir. E por isso peno sozinho através da noite interminável e que parece que me engole a cada minuto que consegue suceder ao anterior.
Viro-me de lado. Agora é a parede que me fará companhia nesta vigília forçada. Festejo interiormente a cada quarto de hora que consigo ultrapassar, são menos quinze minutos até poder dizer-te o calor que me faz ficar febril e inutilizado aqui nesta cama durante horas. Fecho os olhos e aninho-me enquanto penso em ti para ver se consigo adormecer ou, pelo menos, fazer passar o tempo mais depressa.
Abro os olhos uns cinco minutos depois e olho instintivamente para o relógio. Aparentemente resultou porque passaram-se mais do que cinco minutos mas não consigo precisar quantos. Tenho o pensamento completamente focado em ti e nada mais. Pela primeira vez em muitos meses, não dói pensar e aproveito esse facto ao máximo. Viro-me outra vez na cama e fito agora a secretária que está vazia, como eu de tristeza. E é por isto que eu sei que te amo, porque me fazes sentir com vontade de rir. Lembrando-me disto, desato a rir numa histeria que aos olhos de outros que não conhecem o contexto, passaria por loucura simples. Mas é uma euforia pura e natural, porque ultrapassei meses de escuridão para ressurgir do outro lado da montanha e conseguir descer para o vale onde os rios correm e as árvores verdejantes estão carregadas de promessas. E a euforia prolonga-se quando me apercebo que o sol começa a raiar por entre os estores corridos e ilumina-me no meu riso.
Levanto-me e subo os estores para deixar entrar completamente o dia que te trará para junto de mim. Dou uma volta pela casa enquanto me espreguiço, sempre com um sorriso nos lábios. Engulo qualquer coisa na cozinha sem pensar em mais nada que não tu. A televisão aborrece-me pelo simples facto que ninguém fala de ti. Vou-me deitar novamente para tentar então descansar alguma coisa.
As horas passam e os meus olhos permanecem orgulhosamente abertos. Vejo as nuvens que se formam e vão tapando o sol. Irá chover e arruinar o dia radioso mas não será capaz de apagar o fogo que arde em mim e que irá aumentar de intensidade inversamente à distância e o tempo que nos separam. As nuvens ameaçam mas não cumprem e eventualmente acumulam-se de maneira a acinzentar o dia, mas não me deixo desmorecer. Se tínhamos tudo contra nós e conseguimos deliberar que ficaríamos juntos, não será pela vontade da natureza que isso não vá acontecer.
Levanto-me outra vez mas agora sim para ir ter contigo. Tudo o que se passou durante a noite passada foi como que varrido da minha existência. Só existes tu e eu, e seremos felizes enquanto assim fôr. Não te disse isto ainda, mas dir-te-ei e sei que concordarás com a tua voz cortada por um sorriso. Deste-me tantos indícios ontem à noite que não sei mais o que pensar senão o que verbalizo agora e cumprirei daqui a apenas umas horas, umas míseras horas que me impedem de entrar em estado de pura felicidade.
Páro para pensar neste facto. Não sei o que é a felicidade há tanto tempo que não sei o que devo fazer para prolongá-la. Espero que tu saibas e que consigas fazê-lo ao mesmo tempo que me ensinas a viver novamente. E é com este pensamento e esperança que, saindo de casa para te dizer tudo isto, reafirmo interiormente que te amo.