> Escritos: 20, ou a banda sonora da vida de nós os dois

19.4.07

20, ou a banda sonora da vida de nós os dois

7. Amos Lee (with Norah Jones) - Colors

Acordo, estremunhado, com a luz que entra pelas janelas e incide directamente na minha cara. Tento perceber onde estou e porque é que me sinto tão mal. Sem tréguas, o desespero da noite anterior volta e com isso a explicação para tanto sofrimento. Tinha tentado mais uma vez pôr de lado os problemas com recurso à bebida e tinha resultado, nem que fosse durante umas horas. Mas agora estava a ressacar e continuava a não saber o que pensar sobre o que se tinha passado entre nós dois.
Levanto-me resignadamente. Dirijo-me para a casa de banho e abro a torneira. Entro na banheira e deixo que a água fria me arrefeça a pele, numa tentativa de arrefecer o turbilhão de pensamentos negativos que revoluteiam na minha cabeça.
Enquanto me seco, olho-me ao espelho. Nunca percebi porque é que sempre tive um ar gasto, velho, cansado. Apesar de ter sofrido durante mais de metade da minha vida, tive momentos felizes que deveriam atenuar, ainda que minimamente, os momentos maus. Mas a verdade é que tal não acontece e por isso aparento ter mais uns dez anos do que na realidade tenho. Apoio as mãos no lavatório para examinar mais de perto os meus olhos; quase que me vejo reflectido no seu reflexo. De um verde claro, quase transparente, formam uma situação enganadora. Houve quem me dissesse que os meus olhos deviam ser escuros, como a minha alma e que assim as pessoas pensavam que eu era uma pessoa alegre e viva, quando muito pelo contrário, consigo quase sempre trazer infelicidade aos que me rodeiam e que retorna inevitavelmente a mim.
Perco-me nestas considerações e nem oiço o telemóvel a tocar na sala. Passam-se alguns minutos e certamente umas quantas chamadas a que não respondi até que me apercebo que alguém tenta comunicar comigo e poderá ser, momentâneamente, uma maneira de escapar de tanta e incomensurável tristeza. Desloco-me para a sala a fim de perceber quem seria que incomodava a minha estada no abismo e, estonteado, vejo que a pessoa que me liga dá pelo nome de Leonor e que o seu nome e contacto tinha sido inserido na lista telefónica. Sento-me e respiro fundo; atendo.
Com a voz ainda embargada das lágrimas que choraste quando percebeste que sentias alguma coisa por mim, perguntas se me lembro de ti. Apetece-me gritar, saltar, atirar móveis pela janela; claro que me lembro de ti, modificaste a minha vida apenas com algumas palavras. Mas permaneço tranquilo enquanto dizes que pensaste em mim a noite toda e que agora percebias porque é que eu tinha um ar tão calmo.
Contraponho que é para evitar possíveis desilusões e que por isso mantenho um ar frio e distante. Mas, como tentas dizer agora, eu falei contigo e mostrei que existia em mim uma doçura incompreendida. Rio-me silenciosamente; não percebo como é que continuas a acertar tudo sobre mim, agora até pelo telefone.
E, tomado certamente pela inspiração de ouvir a tua voz novamente, digo tudo tanto quanto me vai na alma. Digo-te que as cores parecem mais esbatidas desde que te foste embora no miradouro, que as coisas que me aconteceram desde ontem começam a ganhar contornos de acasos mais do que casuais.
Falas e falas e não me canso da tua voz. Agora sempre que pausas para respirar, também eu fico em suspenso, receoso que não voltes a expressar mais alguma verdade inquestionável acerca de mim e que eu te perca novamente e volte, mais uma vez, para os confins do chão da sala e para o fundo de mais uma garrafa vazia.
E continuamos, como as horas que passam, a tentar encontrar entre nós dois uma explicação para tanta sintonia, e como tantas vezes acontece, teremos que declarar o destino vencedor.
Explicas-me o que sentes. Eu não consigo descrever o que sinto por ti. Não que me falte vocabulário, mas simplesmente porque acho que não existem ainda palavras que te definam, como aquelas que cantavas suavemente quando pensavas que eu não te ouvia.
Mas eu estou apenas atento a uma coisa em particular, e finalmente, após horas de martírio, ficam revelados finalmente os teus interesses em mim. E após ter ouvido as palavras mágicas, renovo-me totalmente por dentro. Disseste, com voz lacrimejante, que havia qualquer coisa em mim que te compelia a aproximar o mais próximo possível e, não querendo desfeitear a tua onda melancólica, não te aviso que o que te puxa, será inevitavelmente o que acabará por nos separar.