> Escritos: 20, ou a banda sonora da vida de nós os dois

3.5.07

20, ou a banda sonora da vida de nós os dois

9. Damien Rice - Delicate

As gotas de água da chuva escorregam pelo poste lentamente, como se a tentarem agarrar e desesperadamente evitar entrar na corrente que as leva para a sarjeta. A meus pés, uma poça é gentilmente sacudida pelas gotas que se soltam do meu cabelo, quebrando a planura da superfície. Estou aqui, na esquina, à tua espera, vendo a chuva a cair e os carros a passar. Apressadas, as pessoas procuram o refúgio dos vãos das portas ou tentam cobrir-se ao máximo com o que arranjam. Eu deixo-me molhar, não há razão para o contrário.
Enquanto não chegas, revejo interiormente a sequência de acontecimentos que me leva a estar agora, aqui à chuva, a aguardar um vislumbre teu. São imagens que vejo e não a realidade, como se estivesse entre o sono e o limite do acordar; uma espécie de dormência em que as coisas que vemos parecem tão reais que a única maneira de sabermos que não o são é procurarmos uma falha nessas coisas. Se forem infalíveis, sei que estou a dormir, pois as desilusões são, em tudo, inevitáveis. E tudo quanto me trouxe aqui não apresenta disparidades ou incoerências com o que me lembro. Por isso desconfio outra vez que não sejas real ou que a desilusão esteja ao virar da esquina e tu não apareças porque sabes que eu te vou puxar para baixo se não tivermos força suficiente para nadar para cima.
Absorto em tais pensamentos potenciados pela quantidade de água que me rodeia, reparo apenas no último instante que atravessas a rua e por isso a maneira como olhas para os lados para tua própria preservação é deliciosa. Abres ligeiramente a boca quando mexes a cabeça e atiras o cabelo para trás quando olhas para a frente e me vês. Puxas-me para debaixo de um toldo e fitamo-nos sem trocar palavras, os dois molhados pelas lágrimas das nuvens cinzentas que choram porque falharam miseravelmente em manter-nos separados. Uma madeixa do teu cabelo enrola-se num caracol suavemente pousado na tua bochecha esquerda. Afasto-a carinhosamente enquanto que com a outra mão alcanço a tua nuca e massajo-ta. Quieta, observas-me enquanto eu tento demonstrar que sei ser carinhoso e gentil. Semicerras os olhos e tens um arrepio de prazer quando passo os meus dedos mais junto do pescoço. E aí, nessa esquina, indiferentes às pessoas que passam, à água que escorre, às nuvens que gemem de tristeza, ao tempo que desliza naquele momento perfeito, os nossos lábios tocam-se, com naturalidade, com delicadeza.
Por uns doces segundos, permanecemos assim e de olhos fechados. Depois, quando os abrimos, pegas-me pela mão como a uma criança que se deixa ir pela promessa de brincadeiras e levas-me para dentro de um café. Aí, sobre um chocolate quente para ti e um café para mim, esporadicamente dizemos o que passámos nas horas até ali, pois não há necessidade de palavras neste equilíbrio delicado de olhares afectuosos e carícias nas mãos. Recosto a cabeça nas costas da cadeira e, de olhos fechados, suspiro. Quando os reabro, recebes-me com um sorriso radioso que ofusca e momentâneamente ilumina a rua deserta que nos espreita melancolicamente pelas vidraças. Não sei como responder a tal oferta e revelo simplesmente a conclusão a que cheguei durante a noite.
Ao ouvires que te amo, as tuas pestanas batem confusamente mas não perdes a compostura porque logo a seguir dizes que já o sabias porque sentes o mesmo. Sinto que me apertas a mão, por cima da mesa, com mais força mas não vejo isso porque o meu olhar ficou temporariamente paralisado pela simplicidade com que disseste aquilo. Beijamo-nos novamente pela liberdade que temos para o fazer e pela vontade de não mais falar e apenas tentar exprimir fisicamente aquilo que nos consome; o desejo delicado de nos entregarmos um ao outro.