> Escritos: Vila Ferreira - 1.2

12.7.05

Vila Ferreira - 1.2

À sombra de um chaparro, Zé do Pipo e Mouro descansavam. As telhas novas brilhavam ao sol, no topo do celeiro, fruto do trabalho árduo dos dois homens.
De olhos fechados, sentindo o suor escorrer pela testa coberta de cabelo, Mouro, assim chamado pela sua compleição muito morena, inspirava lentamente. Enchia os pulmões de ar e só depois expirava, com um ar satisfeito. Zé, por sua vez, fitava, de olhos caídos no chão, os seus próprios pés. Pensativo, desentrelaçou as mãos e pô-las nos bolsos. Ia falar quando percebeu que o Mouro, de súbito, se tinha posto sério. Levantou os olhos e viu que o rosto do companheiro estava cerrado e o seu olhar fixo no horizonte.
- Tenho que ir pedir a jorna ao Medros… - disse Mouro com um tom sombrio.
- Os miúdos…? – Inquiriu Zé.
- Sim. – Assentiu Mouro. Passou as mãos pela cara e inspirou fundo antes de continuar – A Luísa diz que eles passam fome, mas eu é que não como nada há dois dias…
- Que queres? A vida não é fácil. Para além de pobres, as desgraças só nos acontecem a nós. Olha o Tó. – Replicou o Zé do Pipo.
- Pois… - soltou apenas Mouro, enquanto erguia os olhos para o céu, como que à procura de algo.
Ficaram calados durante algum tempo. Um sopro de ar quente fez soltar mais algumas gotas de suor do topo das cabeças morenas dos dois homens. Zé do Pipo revirava o chapéu nas mãos enquanto fitava a planície deserta. As searas de trigo dourado, imóveis, estendiam-se pela herdade até às casas no monte. Ao fundo, para lá deste, os estábulos e as pastagens onde os animais passavam os dias e as noites.
Perscrutava o horizonte quando, no carreiro de terra que dos lados do portão, uma pequena figura foi tomando forma. O Mouro olhava agora atentamente, também, para o rapaz que vinha a correr. Quando ele se aproximou, chamou:
- Eh Manel! Onde vais com tanta pressa?
O porcariço travou até parar. Dobrou-se e pôs as mãos nos joelhos, enquanto retomava o fôlego. A arfar, conseguiu dizer:
- Estou à procura de Vasco Medros, o feitor. Tenho um recado para ele da parte do Mira. – Calou-se, para não se cansar mais.
- Do Mira, dizes? – Disse o Mouro, introspectivo. – Está bem, anda daí. Também tenho que falar com ele. – Levantou-se e estendeu o braço ao Zé. Este, sempre de olhos fixos no vazio, ergeu-se.
Dirigiram-se então, os dois homens e o rapaz, para a casa onde se fazia o almoço para os homens. À medida que se aproximavam, o cheiro a comida foi-se instalando à sua volta. Manel sentia o estômago colar-se às costas, tal era a fome. Mas a mesa posta à sombra era tanto mais apelativa quanto o aroma que saía de dentro da cozinha. Zé do Pipo passou a língua pelos beiços; também ele tinha fome.
Dona Josefa apareceu na soleira da porta. Com um sorriso nos lábios, viu que os homens se iam sentando.
- Chegam a boas horas, está quase pronto! – Exclamou.
- Oh Zéfa, o que é o almoço? – Inquiriu o Mouro.
- Hoje é borrego assado. – Informou Dona Josefa. Desviou o olhar para o porcariço – Manel, já lavaste as mãos?
- Não, Dona Zéfa…
- Então vai lá. – Disse a velha criada de forma benevolente. Sorriu ao ver o rapaz correr para a cozinha. Sentou-se ao lado do Zé do Pipo e perguntou:
- Os outros? Onde estão?
- Devem estar a vir da vila. – Respondeu o interpelado enquanto partia um dos grandes e duros pães que estavam em cima da mesa. Passou metade ao Mouro e arrancou um pedaço da sua. Levou-o à boca e começou a mastigá-lo devagar, como que a aproveitar o facto de ter comida na boca.
Mouro não tocou no seu pão, apesar da fome que lhe roía o estômago. Estava mais preocupado em saber se levava comida para casa nesse dia.
- Zéfa, onde está o feitor da Herdade? – Perguntou.
- Foi ver as searas com o Bento, o Xavier e o Castro. Porquê?
- Tenho que lhe pedir a jorna… - murmurou, de olhos postos no pão, como que envergonhado, aquele homem de barba rija e pai de cinco filhos. Dona Josefa não respondeu; compreendia a miséria que aqueles homens viviam, a miséria que todos sentiam.
Ao abeirar-se da mesa, Manel perguntou, por sua vez, por Vasco Medros. A velha criada, absorta nos seus pensamentos, respondeu:
- Há-de estar a chegar. Hoje parece que ninguém quer comer, todos querem saber onde está o Sr. Vasco… - calou-se, mirando a planície ondulada. O silêncio foi geral até à chegada do feitor e dos outros camponeses. Ao vê-los aproximarem-se, Manel levantou-se de um salto e correu para eles.
- Sr. Vasco! Sr. Vasco! Tenho que lhe dizer uma coisa!
Ao ouvir isto, mandou os homens que o acompanhavam sentarem-se com um gesto da sua mão. Afastou-se mais uns passos da mesa e interpelou o porcariço.
- Diz lá o que se trata, Manel.
- Venho de Vila Ferreira, da venda do Sr. Romão. – Parou para respirar – O Mira disse-me para lhe dizer que o patrão Francisco voltou.
- O patrão Francisco!? – Exclamou o feitor, não sem alguma surpresa.
- Sim. Pelo menos foi o que o Mira disse – tornou o miúdo.
Vasco Medros, perante tal informação, deixou-se ficar quieto. Sentia agora uma pequena aragem levantar-lhe o cabelo por detrás das orelhas. Baixo, mas de ombros e peito largos, a sua cabeça era coberta por um invulgar cabelo loiro naquelas paragens. Talvez fosse essa mais uma das razões que levava os camponeses a respeitarem-no como se fosse o seu patrão. Efectivamente, na ausência de Francisco Ferreira e, tendo em conta as mortes do pai e tios deste, era Vasco que dirigia os destinos da Herdade, sob as ordens longínquas vindas de Lisboa da parte de Francisco. Agora, e na iminência da sua chegada, Vasco via um peso ser-lhe retirado dos ombros, pois que vinha aí a sempre complicada época da ceifa.
- Vai-te sentar, Manel, e diz à Zéfa para servir. – Disse o feitor, quebrando o mutismo. Virou-se para o carreiro que ligava o monte ao portão da Herdade, como que à espera de ver o seu amigo voltar. De facto, dois homens subiam vagarosamente a ladeira, mas eram apenas Álvaro e Mira, vindos de Vila Ferreira. Dirigiu-se para a mesa, onde já fumegava uma caçarola, quando o Mouro saiu ao seu encontro. Percebendo que seria interpelado, estacou e esperou.
O Mouro, perante aqueles olhos penetrantes, hesitou nos seus intentos. Apercebendo-se disto, Vasco falou:
- Desembucha, homem, que parece que a gata te levou a língua!
Aturdido com estas palavras, o camponês, cabisbaixo, apenas conseguiu balbuciar:
- Pois, Sr. Vasco… o que eu lhe vinha pedir era se me podia adiantar a jorna…
- Olha Mouro, falamos a seguir ao almoço, sim? – Retorquiu o feitor, e foi-se sentar à cabeceira da mesa. Baralhado com a ausência de uma recusa frontal, Mouro seguiu-lhe os passos. Sentou-se e, com um olhar desconfiado, guardou o seu pão no bolso forrado por dentro do seu colete; hoje haveria que comer em casa.
Antes de se sentar, o Mira deu umas palavras em voz baixa a Vasco. Este nada respondeu e mandou-o apenas sentar. Depois de ver todos no seu lugar, levantou-se e tomou a palavra:
- Bem, rapazes, comam, que quem não é para comer, não é para trabalhar! – Exclamou.
Posto isto, Dona Josefa levantou a tampa de barro da caçarola e imediatamente um aroma a ervas enbebidas no sangue do borrego penetrou nas narinas daqueles homens, que havia muito que não comiam.

Serviram-se e comeram em silêncio, apenas parando para dar uns goles de água e vinho, que ajudavam a empurrar a carne e as batatas para baixo. Depois, e já com a barriga mais reconfortada, começaram a falar. Fosse sobre as searas que iam ceifar dentro de poucos dias ou sobre os acontecimentos da noite passada em Valcrespo, a verdade é que todos estavam contentes por poderem comer e retemperarem as forças. Dona Josefa retirara-se para a cozinha e dava já ordens às raparigas que a ajudavam nas lides da arrumação. Aos poucos, os homens voltaram ao silêncio, contemplando a vastidão dourada que os cercava e cujo seu fado era desbastá-la. Manel dormitava agora à sombra das oliveiras. Uma leve aragem, suficiente para tirar todos de um abafado sufocante, correu por entre a verde folhagem daquelas árvores perenes.
Refrescados pelo vento suave, começaram agora, os afortunados que tinham, a enrolar cigarros. Mas, num espírito de camaradagem, partilhavam-nos com os seus compadres. Afinal, se a todos tocava o infortúnio geral, ao menos que todos aproveitassem estes pequenos prazeres. E foi já sobre uma densa nuvem de fumo, que aqueles que estavam à mesa viram-no chegar: o homem de fato preto, que trazia o casaco por cima do ombro direito e com a camisa branca suja de poeira, subia o monte e vinha para a mesa. O Mira deu uma cotovelada discreta no braço de Álvaro; este anuiu silenciosamente com os olhos.
Vasco Medros levanta-se. Compondo a camisa com as mãos, dirige-se ao recém-chegado. Os dois homens envolvem-se num abraço fraterno e trocam, silenciosamente, algumas palavras. De seguida, Vasco condu-lo à mesa onde todos os homens os fitam em silêncio. Ouvem, então, pela primeira vez a voz do desconhecido, que lhes fala com um tom afectuoso embrenhado numa voz áspera.
- Boas tardes, meus senhores. O meu nome é Francisco Ferreira e sou o vosso patrão.

RCA