> Escritos: Vila Ferreira - 1.1

12.7.05

Vila Ferreira - 1.1

O calor sufocante que se fazia sentir obrigava as pessoas a procurarem abrigo dentro de casa. Poucos eram os que se aventuravam pelas ruas de Vila Ferreira, fustigada pelo vento suão e pelo sol ardente. O ar não era mais do que calor parado. A aragem quente que corria parecia drenar a vida de quem ela tocava.
Talvez fosse por isso que somente quem estava na venda do Romão viu aquele homem de fato preto subir a colina pela estrada que vinha de Valcrespo. Álvaro e Mira estavam sentados a uma mesa, bebendo vinho. O Romão acompanhava-os na conversa lenta, que escorria como o dia. Calaram-se quando o homem entrou. Alto, trigueiro e introspectivo, o ar de mistério era completado pelo fato preto e gravata condizente, naquele dia escaldante. Sentou-se, perante o ar expectante dos três homens.
- Uma cerveja. Fresca. – Pediu, enquanto alargava a gravata e desabotoava o primeiro botão da camisa.
Silencioso, Romão serve-lhe a cerveja. Fita-o enquanto o desconhecido bebe com voracidade, como se não bebesse havia dias. Quando acabou, levantou-se e lançou sobre o balcão uma moeda de escudo.
- Boas tardes, meus senhores. – Disse, à laia de despedida e saiu da venda.
Saiu para o sol impiedoso e os homens admiravam-no por não usar chapéu. Mira inquieta-se na sua cadeira.
- Diabos me levem se não era… Oh Romão, chama o puto!
- Manel! Anda cá, Manel! – Bradou o dono da venda para dentro.
Manel, o porcariço da Herdade, assomou à porta que dava para a sala que servia de arrecadação. Franzino e pequeno, o olhar vivo comprometia o seu aspecto de pequeno adulto. Ninguém sabia ao certo a sua idade, embora devesse rondar os treze, como ninguém sabia quem eram os seus pais.
- Diga, Sr. Romão.
- Já arrumaste as sacas? – Perguntou Romão.
- Já, senhor. E já arrumei também as garrafas. – Informou o porcariço.
- Então faz o que o Mira te pedir – retorquiu o comerciante, com um ar satisfeito pelo trabalho desenvolvido pelo miúdo.
Manel voltou-se para o Mira. Este acabou de sorver o copo antes de falar.
- Manel, vais a correr até à Herdade e procuras Vasco Medros, o feitor. Diz-lhe que vens da parte do Mira – fez uma pausa para limpar o suor da testa. – Diz-lhe que o Patrão Francisco voltou. – Perante a imobilidade do miúdo, Mira dá-lhe um caldo no pescoço e exclama. – Ainda aqui estás?
Manel larga a correr. Os dois homens da lavoura ficam a observá-lo enquanto a criança desaparece no ar trémulo por causa do calor. Romão, sempre silencioso, seca um copo.
- Calor de um cão… - desabafa Álvaro, antes de acabar o seu copo. Em jeito de concordância, Romão acena com a cabeça, ainda com um ar compenetrado no copo.
Mira levanta-se. Aproxima-se, casualmente, do balcão e dispara a pergunta que lhe vem roendo a boca.
- Mestre Romão, não me queres fiar uma onça de tabaco?
O breve sussurrar do vidro contra o pano cessa. Álvaro levanta os olhos do copo, como que interessado. Romão responde simplesmente:
- Sabes que não vendo fiado, Mira – e continua a secar o copo. Perante o ar desolado do Mira, Álvaro intervém.
- Paga-te duas onças de Duque, e um pacote de mortalhas. – Levanta-se e aproxima-se do balcão, por seu turno. Tira do porta-moedas a quantia exacta e deixa-a na mão estendida do comerciante.
Recebem o tabaco. Ajeitam os chapéus na cabeça e, despedindo-se, saiem da venda. É, agora, a vez de Romão vê-los desaparecer por entre a alvura brilhante das csas. Voltou ao copo, já seco.
Os dois homens vão, vagarosos, enrolando cigarros. Sentam-se nos degraus da fonte da praça, fumando. Vila Ferreira estende-se à sua volta; o Paço do Município, imponente, com a bandeira parada e morta no mastro do varandim, domina a praça. As vendas, relojoarias, sapatarias e outro comércio completavam a praça deserta. As casas dos camponeses espraiavam-se em redor. De quando em quando, quintais surgiam nas traseiras, onde as mulheres lavavam a roupa nos tanques de pedra.
Uma cantilena triste interrompe a reflexão muda dos dois homens. Viram, por trás do fumo dos cigarros parado no ar, um homem surgir de uma viela. Balanceava a cabeça ao sabor da sua cantiga, imperceptível.
- É o Louco… - deixou escapar o Mira, por entre baforadas.
Aproximou-se da fonte onde Álvaro e Mira estavam sentados. Com uma vénia teatral, cumprimentou-os.
- Boas tardes, meus senhores. Que este sol brilhante e generoso aqueça os vossos corações. – Posto isto, afasta-se, com a gadelha comprida e morena exposta ao sol que ele tanto apregoava.
- Vida fácil leva ele… - sentencia Álvaro.
- Se também a mim me dessem de comer… - agarrado ao estômago, o Mira olha para o céu.
Álvaro fala, quebrando o silêncio que se havia instalado.
- Vamos, já nos devem esperar na Herdade. – Levantou-se e começou a andar.
Mira atira o que resta do cigarro para longe. Levanta-se, por sua vez, e dá uma corrida para alcançar o amigo. Vão, lado a lado, pela estrada de terra, ladeada pelas casas dos seus companheiros. Uma criança fitava-os, muda e queda, da soleira de uma porta.
- Um dos putos do Mouro… - aponta o Mira. Continuam a caminhar. A brancura suja das casas vai sendo gradualmente substituída pela planície castanha. Uma árvore ergue-se, solitária, à beira da estrada, projectando uma última sombra à saída da vila. Ainda ouvem a criança chamar, por trás deles.
- Oh senhora mãe!
Álvaro mete as mãos aos bolsos.
- Calor de um cão… - repete. Mira concorda com um aceno da cabeça e as palavras perdem-se no vento que não sopra. Tomam o caminho da direita; Vila Ferreira, deserta sob o sol, fica para trás.